África do Sul: Um Presidente contra o seu povo
6 de maio de 2022Poucos trabalhadores apareceram no comício do 1º de Maio na província de North West para ouvir o Presidente Cyril Ramaphosa, no início da semana. Os poucos que o fizeram abafaram o discurso do chefe de Estado com as palavras de ordem "Cyril tem de sair".
O confronto com o Presidente no Estádio Royal Bafokeng, no domingo (01.05), envolveu sobretudo trabalhadores em greve da mina de ouro de Sibanye-Stillwater, em Rustenburg e vários apoiantes dos mineiros que exigem melhores salários.
Ramaphosa entregou o microfone e abandonou o palco, sem conseguir discursar. E a sua saída num carro blindado da polícia foi transmitida em direto na televisão.
Controlo de danos
"Eu não conseguia acreditar quando tudo aconteceu. Na verdade, quando o Presidente estava a ser mandado embora [pelo público] eu dizia à minha mulher que não acreditava", disse Herman Mashaba, o antigo presidente da câmara de Joanesburgo e líder do partido ActionSA, em entrevista ao canal News24.
Nos últimos dias, o partido de Ramaphosa, Congresso Nacional Africano (ANC), e os seus aliados e apoiantes têm estado ocupados a tentar controlar os danos. Ramaphosa rapidamente divulgou um comunicado expressando a necessidar de um acordo "justo" de salários para os mineiros.
"As queixas salariais dos trabalhadores em Rustenburg merecem a atenção de todos os envolvidos, empregadores e trabalhadores para que se possa chegar a um acordo justo e sustentável", escreveu Ramaphosa. "Como Governo, estamos empenhados em desempenhar o nosso papel".
Um momento crucial
Mas as classes média e baixa recusam ser iludidas e muitas pessoas têm expressado o seu apoio à multidão anti-Ramaphosa do Dia do Trabalhador. Partidos políticos e analistas estão a acompanhar a situação atentamente. Além de estarem a decorrer eleições municipais em três províncias, os conflitos internos intensificam-se no ANC e Ramaphosa prepara-se para se candidatar à reeleição como líder do partido no próximo ano.
"Podemos dizer que ele está gradualmente a perder credibilidade entre os trabalhadores que querem que o Governo aborde questões básicas", considera Brian Sokotu, jornalista político em Joanesburgo.
Os dois maiores sindicatos mineiros exigem um aumento salarial de mil rands, cerca de 60 euros por mês, nos próximos três anos. A mina pretende aumentar os seus trabalhadores em apenas 800 rands.
Ferida aberta
Os trabalhadores descontentes da província de North West não estão muito distantes da mina de platina de Marikana, onde a polícia matou 34 mineiros em greve e deixou dezenas de feridos em 2012.
Na altura, Ramaphosa era diretor não-executivo da Lonmin, a multinacional que geria Marikana. A Lonmin, que entretanto foi comprada pela Sibanye-Stillwater, apoiou uma intervenção dura para acabar com a greve.
Foi o pior tiroteio policial desde o fim do regime de segregação racial do 'apartheid'. Muitos cidadãos ainda não aceitaram o pedido de desculpas de Ramaphosa pelo seu papel. Durante a era do 'apartheid', Ramaphosa liderava a União Nacional de Mineiros, mas, como líder sindical, era conhecido pelos seus gostos requintados, bons vinhos e viagens em primeira classe.
Acumulou uma fortuna considerável graças às iniciativas de capacitação económica dos negros após o fim do domínio da minoria branca, em 1994. Hoje, estima-se que a sua fortuna se situe na casa dos três milhões de dólares.
Quem confia em Ramaphosa?
A questão que o Presidente sul-africano enfrenta agora é como reconciliar as necessidades dos tranalhadores com as exigências das grandes empresas de mineração e outras.
"Em teoria, ele está envolvido nas duas partes - o movimento dos trabalhadores e os negócios. Mas nenhuma das partes confia nele, pela sua falta de determinação nos principais problemas do país", diz Lumkile Mondi, economista e professor na Wits Business School, em entrevista à DW.
"É visto pelos trabalhadores como um representante dos negócios. Distante, solitário e, sob a sua liderança, a crise económica e política da África do Sul agravou-se, com violência, destruição de infraestruturas e anarquia", acrescenta.
Lucie Mbele, residente em Joanesburgo, tem três filhos e está desempregada. À DW, conta que percebe porque é que os mineiros se comportaram daquela forma no Estádio Royal Bafokeng: "A economia está muito mal. Tudo está a ruir. Os preços dos alimentos estão a aumentar. Tudo está caro - a habitação é cara e não há oportunidades de emprego agora, porque a maioria das empresas está a fechar por causa da economia".
"Por isso, parece-me que o Presidente não está a fazer o suficiente para ajudar o país, neste momento", conclui.
Quatro anos de um novo capítulo
Quando Ramaphosa venceu as eleições presidenciais em 2018, a África do Sul estava otimista na capacidade do novo chefe de Estado, com uma vasta experiência no mundo empresarial, fazer crescer a economia rapidamente, de forma a tirar mais pessoas da pobreza.
Mas Ramaphosa tinha herdado problemas e teve de monitorizar uma investigação à corrupção do Estado que teve o ponto alto sob a liderança do seu antecessor, o veterano do ANC Jacob Zuma, que ainda escapa à justiça.
Entretanto, dados do Governo mostram que 18 milhões de cidadãos dependem do seu programa de apoio social. O número de jovens desempregados entre os 15 e os 24 anos bateu recordes em finais de 2021.
"Em termos de desemprego, se o país tem uma taxa de desemprego jovem de 66,5%, isso é realmente muito elevado", nota Brian Sokutu, jornalista político. "As pessoas estão mesmo a clamar por empregos através do empoderamento dos jovens".
Grandes empresários
No ano passado, o diretor-executivo da Sibanye-Stillwater Neal Froneman recebeu cerca de 300 milhões de rands em salários, segundo o relatório anual da empresa. Ao mesmo tempo, a indústria extrativa estimava que ajudar o Governo custaria cerca de 300 milhões de rands.
Muitas vezes, os salários dos magnatas das minas e grandes empresários fazem manchete na África do Sul. Em média, um trabalhador sul-africano recebe 24 rands por mês, segundo um inquérito realizado em 2021 pela Statistics South Africa.
A juventude do país é particularmente crítica de figuras como o diretor-executivo da Sibanye-Stillwater. "As críticas justificam-se, num país com enormes desafios económicos e políticos", diz o economista Mondi. No entanto, acrescenta, as empresas sul-africanas precisam de líderes que "compreendam os desafios da comunidade, alterações climáticas, governação e sustentabilidade". E para os atrair, nota, precisam de ser remunerados ao nível dos seus pares em todo o mundo.
As perspectivas de Ramaphosa
Analistas políticos esperam que Ramaphosa se mantenha na Presidência após as próximas eleições gerais, em 2024, mesmo com os graves conflitos internos no ANC, incluindo membros indisciplinados e rivalidades que, em alguns casos, levaram a mortes.
Mas, ao mesmo tempo, o ANC conta tradicionalmente com os trabalhadores para garantir a sua maioria nas urnas. Enquanto a poderosa Confederação Sindical Sul-africana (COSATU) continua a ser uma aliada do partido, as uniões sindicais, no geral, estão divididas e o número global de membros é baixo.
Zwelinzima Vavi, secretário-geral da COSATU, disse recentemente que mais de 70% dos cidadãos empregados não pertencem a um sindicato. E a culpa, afirmou, é do capitalismo e da intimidação dos empregadores.
No mês passado, o partido de esquerda radical Lutadores pela Liberdade Económica (EFF, na sigla em inglês), anunciou que está a planear criar um sindicato associado à formação política.