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Nova chance para as escolas corânicas na África Ocidental?

Katrin Gänsler
19 de junho de 2020

A pandemia do coronavírus relançou um debate sobre o tratamento das crianças nas escolas corânicas na África Ocidental. A pandemia tornou-as mais vulneráveis. Mas muito pouco tem sido feito até agora para as apoiar.

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Almajiri-Kinder in Westafrika
Foto: DW/Katrin Gänsler

Pequenos rapazes com roupas esfarrapadas, a segurar uma tigela de plástico e a pedir dinheiro ou comida são uma imagem ubíqua em toda a África Ocidental. Normalmente, eles vagueiam em pequenos grupos, recitando o Corão. São frequentemente vistos em cruzamentos e estações de autocarros, ou a tentar a sua sorte em meio a grandes multidões para o desagrado de muitos transeuntes que afugentam as crianças em vez de as ajudar.

Em 2014, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estimou o número destas crianças, conhecidas localmente como almajirai, em cerca de 9,5 milhões só na Nigéria. Nos países francófonos, são conhecidas como talibés. Segundo a ONG Human Rights Watch (HRW), existem mais de 100.000 talibés no Senegal.

Mas, independentemente da sua origem, estas crianças participam essencialmente no mesmo sistema de educação islâmica. A maioria é enviada pelos seus pais de regiões rurais para aldeias e cidades maiores. Muitas delas ainda estão em idade escolar primária.

Esta prática existe há 300 anos e não é nova nem estranha, diz Sheik Nuruddeen Lemu, do Instituto Da'wah de Estudos Islâmicos da Nigéria. "Almajiri' é a palavra Hausa para ['Al] Muhajir', que em árabe significa migrante", conta à DW.

Almajiri-Kinder in Westafrika
As crianças são frequentemente mal tratadas pelos transeuntes, que as vêem como um incómodoFoto: DW/Katrin Gänsler

Crianças indesejadas

Os imãs são responsáveis pela educação religiosa das crianças. Eles também ensinam, entre outras coisas, impostos e direito matrimonial. Na Nigéria, a tradição "almajiri" é particularmente comum entre os grupos étnicos Hausa e Fulani e é considerada mais um fenómeno cultural do que um fenómeno religioso.

Muitas das crianças que são obrigadas pelos imãs a mendigar para sobreviver vivem em condições terríveis. O seu alojamento é pobre e as crianças são frequentemente castigadas com espancamentos. Não existem instalações sanitárias e não têm acesso a abrigos seguros.

A pandemia do coronavírus é, portanto, particularmente perigosa para estas crianças. As más condições de vida aumentam as suas hipóteses de infeção. Muitas pessoas também acreditam que elas estão a ajudar a espalhar o vírus, apesar de não haver qualquer prova disso.

No entanto, alguns governadores na Nigéria começaram a enviar os rapazes para casa - muitas vezes contra a sua vontade, a meio da noite e, por vezes, por meios violentos. O Estado de Kaduna e o seu governador, Nasir El-Rufai, foram até mesmo um passo mais longe. Apresentaram ao Parlamento uma lei que proíbe a prática de almajirai.

"Queremos desmantelar o sistema para que as crianças possam permanecer com os pais", afirmou El-Rufai. "Devem receber uma educação moderna de manhã e aulas de Corão à tarde", acrescentou.

Nigeria Polizei befreit Koranschüler aus unmenschlichen Bedingungen
No ano passado, a polícia da Nigéria libertou crianças mantidas em condições desumanas nas escolasFoto: Reuters/Str

Uma controvérsia antiga

A legislação proposta desencadeou uma nova ronda da antiga controvérsia sobre a prática tradicional. Os críticos encaram a iniciativa de El-Rufai como precipitada e consideram que poderá resultar numa situação ainda pior para as crianças.

"Não penso que necessariamente ajudará a trazer as crianças de volta às suas aldeias de origem", diz Hannah Hoechner, professora da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, cujo trabalho de investigação incide sobre as escolas corânicas. "Há razões para terem deixado esses lugares. As famílias têm dificuldade em alimentar todos os seus filhos", revela. Hoechner acredita que, em vez de mandar embora as crianças, devem ser tomadas medidas para reforçar a economia rural.

Outros pensam que é necessária uma reforma fundamental do sistema. "Ele proporciona uma aprendizagem religiosa, que é considerada muito útil", avalia Peter Hawkins, representante da UNICEF na Nigéria. Mas Hawkins também reconhece a falta de transparência e de padrões vinculativos.

"Não sabemos que conhecimentos estão a ser transmitidos às crianças e como se estão a desenvolver", afirma. "Mas sabemos que as crianças e os jovens que saem deste sistema enfrentam dificuldades no mercado de trabalho. Têm dificuldade de adaptação", revela.

Koranschulen im Senegal
Países francófonos iniciaram introdução de reformas nas escolas corânicasFoto: DW/K. Gomes

O exemplo maliano

Países como o Mali têm vindo a criar escolas franco-árabes, que poderiam servir de modelo. As ONGs passaram anos a fazer campanha por estas instituições e conseguiram convencer gradualmente os imãs dos seus benefícios. As crianças continuam a aprender o Corão, mas também matemática e francês. Um número crescente de raparigas está também a frequentar estas escolas. A Nigéria tem um sistema semelhante chamado "islamiyya".

Hoechner tem dúvidas: "As escolas não conseguem resolver todos os problemas", enfatiza. Em ambos os casos, os pais têm de pagar as propinas, bem como os uniformes e o material de aprendizagem.

As escolas corânicas também têm outra vantagem em relação à escolaridade tradicional para estas crianças: "Elas adaptam-se aos ciclos de trabalho cultural", explica Hoechner. "Os alunos têm férias quando têm de ajudar os pais no campo. Depois, podem voltar facilmente, o que não é o caso das escolas islamiyya' e franco-árabes", descreve.

Responsabilidade da sociedade

Mohammed Sabo Keana, fundador da Almajiri Child Rights Initiative (ou Iniciativa dos Direitos das Crianças Almajiri, na tradução literal para o português), exige uma reorganização de todo o sistema. A sua iniciativa, que apoia os "almajiri" no Norte da Nigéria, considera que as escolas corânicas devem deixar de ser a responsabilidade de imãs individuais, para serem apoiadas pelas comunidades das aldeias.

O ativista exige o envolvimento parirário do Estado, dos pais e da sociedade em geral, dizendo que também deveriam ser eles os responsáveis por encontrar uma forma de financiar as escolas. Ninguém deveria poder contornar tão facilmente a responsabilidade pelas crianças. "Mas do que precisamos acima de tudo é definir com precisão as regras ", conclui Sabo Keana. Até agora, ainda as regras não existem.

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