"Não houve uma verdadeira observação eleitoral em Angola"
30 de agosto de 2022Em Angola, não cessam as críticas ao processo eleitoral. A União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA) anunciou que vai entregar uma reclamação com efeitos suspensivos dos resultados das eleições de 24 de agosto anunciados pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE), que proclamaram a vitória do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
Ao mesmo tempo, o maior partido da oposição e o Movimento Cívico Mudei apontam para contagens paralelas que diferem dos resultados oficiais, embora vários observadores internacionais tenham dado nota positiva às eleições gerais angolanas.
Em entrevista exclusiva à DW África, a ex-eurodeputada portuguesa Ana Gomes critica fortemente os observadores eleitorais. Diz que a prova da "manipulação" dos dados é a não divulgação de "resultados detalhados por bairro e município" e questiona o MPLA se "vai querer ganhar com lisura, para ter credibilidade na governação, ou vai querer apenas manter-se no poder para continuar a roubar?"
DW África: Qual foi, afinal, o papel dos observadores eleitorais nestas eleições?
Ana Gomes (AG): Eu não lhes chamo observadores eleitorais. Com generosidade, chamo-lhes "observadores do dia da votação". Na verdade, observadores eleitorais "observam" todo o processo, desde o registo à forma como decorre a campanha e como são utilizados os média. E [observam] a contagem dos votos, isso é crucial. É isso que faz, por exemplo, uma missão de observação eleitoral da União Europeia (UE).
Quando há meses a abordagem no sentido de uma missão de observação eleitoral do bloco europeu foi recusada pelas autoridades de Luanda, eu pessoalmente percebi que não havia interesse na transparência, nem na credibilidade das eleições.
Como sublinhou o professor da Universidade de Oxford, Ricardo Soares de Oliveira, as missões que foram a Luanda agora têm interesse na manutenção do "status quo" em Angola por causa das intensas relações que mantêm com o Governo angolano - tanto a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como a União Africana (UA) e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).
DW África: É isso que explica essas questões que ficam por observar?
AG: Não houve uma verdadeira observação eleitoral por parte destas missões. Eles não saíram de Luanda, não assistiram detalhadamente a todas as fases do processo. Nem vou falar de outros observadores que foram convidados pelo Governo e que, naturalmente, foram às suas expensas. É o caso de três observadores portugueses. Eu não lhes chamo observadores, chamo-lhes "carimbadores", porque foram dar o selo de credibilidade a uma coisa que obviamente não poderia ter. Ele próprios admitiram que não fizeram a observação de contagem. E não saíram de Luanda.
DW África: Pode-se falar aqui de alguns fatores externos que impeçam o trabalho mais abrangente e aprofundado destas missões?
AG: O fator é o Governo de Angola. Se, à partida, as autoridades que organizam o processo eleitoral, como a Comissão Nacional de Eleições (CNE) ou o Tribunal Constitucional (TC), não são independentes e não querem uma observação eleitoral séria, é porque obviamente não estão interessadas na transparência. Em Luanda seria demasiado escandaloso e perigoso manipular os resultados, mas, obviamente, manipulam o resultado final através da compensação que fazem com os resultados das províncias. E onde está a prova? Até hoje, a CNE não apresentou resultados detalhados por bairro e município, divulgou apenas os dados agregados por província e pelo país em geral.
Por isso, é importante o pedido da coligação da oposição, liderada pela UNITA, para que se confrontem as atas síntese afixadas nas portas das mesas da votação com os dados em que a CNE se baseou para chegar aos números apresentados.
DW África: Entretanto, as avaliações positivas por parte dos observadores poderão, de alguma forma, influenciar o processo eleitoral? Por exemplo, podem contribuir para credibilizar o processo eleitoral no estrangeiro?
AG: Não se pode credibilizar o que não tem credibilidade, por muito que os observadores internacionais se esforcem por apresentarem "boa luz". A questão não é o que pensam os observadores internacionais, mas sim o que pensa o povo angolano. Ou seja, se as eleições foram roubadas, ou não.
DW África: As avaliações não poderiam ter impacto na opinião pública, dentro e fora do país?
AG: No meu entender, não. Para que o vencedor das eleições - seja ele o MPLA ou a UNITA - possa governar com confiança, e para que os cidadãos confiem que ganhou com lisura, é essencial comparar os resultados das atas síntese na posse da UNITA e da CNE e fazer a respetiva adição dos dados.
DW África: No último domingo, um dos observadores da CPLP pediu aos angolanos que façam esse esforço para esclarecer tudo, e sugeriu essa comparação de dados. Vindos dos observadores, estes apelos poderão surtir algum efeito?
AG: Espero bem que sim, fazem sentido. É sinal de que [eles] têm consciência de que, de facto, a base da CNE para os resultados que anunciou não é transparente, nem conhecida. Eu espero que isso ecoe também nas autoridades angolanas, caso contrário a vida delas será muito, muito difícil.
Por outro lado, não são aceitáveis os apelos que vi de outros observadores. Designadamente, de um dos portugueses que lá esteve. O Dr. Paulo Portas veio à televisão portuguesa dizer que era preciso negociações, como se a questão essencial da transparência, num ato eleitoral, se pudesse ultrapassar através de negociações para um governo de unidade nacional. O povo foi votar ordeiramente e quer obviamente saber quais são os resultados e o peso relativo das diversas forças que competiram. Não é salutarmente democrático, é mesmo antidemocrático.
DW África: O que pode ser feito para corrigir estas questões de que falamos e melhorar este desempenho no futuro?
AG: Às autoridades angolanas, compete ter bom senso e perceberem que não é possível enganar o povo.
Os estrangeiros aqui, as missões de observação eleitoral ou outros Governos, podem discretamente oferecer palavras de bom senso a uma parte ou outra. Mas, obviamente, em última análise, as próprias instituições angolanas é que devem decidir. Portanto, a questão que se coloca é: desta vez, o MPLA vai querer ganhar com lisura, para ter credibilidade na governação, ou vai querer apenas manter-se no poder para continuar a roubar?