Angola: Major Lussati "foi apenas um testa de ferro"
29 de junho de 2022O julgamento do major Pedro Lussati, arguido num esquema fraudulento que envolve militares da Casa de Segurança do Presidente angolano, João Lourenço, arrancou esta semana em Luanda. Lussati é arguido num megaprocesso que envolve 49 réus e pelo menos 200 testemunhas.
Em junho do ano passado, a chamada "Operação Caranguejo" desmantelou um esquema que envolvia pagamentos fraudulentos a partir da folha salarial da Casa de Segurança do Presidente da República, e através do qual terão sido desviados do erário público 62 milhões de dólares (cerca de 59 milhões de euros).
O "megaprocesso" acontece a poucos meses das esperadas eleições angolanas de 2022. Agostinho Sicatu, diretor do Centro de Debates e Estudos Académicos de Angola, considera que este julgamento pode ser interpretado como uma "demonstração clara de que até há figuras da Casa do Presidente da República que também podem ir parar às barras do tribunal".
DW África: Qual é a implicação do julgamento do major Lussati a poucos meses das eleições? Acredita que poderá influenciar o rumo das eleições de 2022 em Angola?
Agostinho Sicatu (AS): De modo estratégico, interessa a quem governa credibilizar o processo de combate à corrupção neste momento, para fazer a demonstração clara de que até há figuras da Casa do Presidente da República que também podem ir parar às barras do tribunal. Este julgamento pode ser interpretado nessa perspetiva, não tanto na perspetiva concreta de se fazer justiça, porque nesta altura toda a atenção dos cidadãos está virada para o processo eleitoral, para as eleições, que acontecem dentro de dois meses. Este é, de facto, um caso um pouco inédito, porque é exatamente dentro da casa do próprio Presidente da República. Por um lado, mexeu na estrutura da Casa do Presidente da República, mas por outro lado o Major Lussati é tido apenas como uma peça menor, portanto foi apenas um testa de ferro. De modo que, as figuras principais responsáveis por estes crimes não aparecem no banco dos réus.
DW África: E porquê?
AS: Não é possível, nos montantes em que se fala e com as transações que se fez, uma individualidade com a patente que ostenta, apenas de major, ter acesso a tanto dinheiro e ter acesso a todos os mecanismos legais. O dinheiro foi transacionado por via bancária e, portanto, os bancos têm procedimentos próprios e isso só poderia acontecer por um esquema bem orquestrado. Não poderia ser um major daquele nível. Há situações em que exigem mesmo autorizações de altos dirigentes. O próprio Presidente da República terá de se pronunciar [sobre o caso], terá de dizer alguma coisa.
DW África: O senhor mencionou a instrumentalização, por assim dizer, deste julgamento, como se fosse uma retoma da caça às bruxas. Mas, por outro lado, estas também são figuras muito próximas ao Governo. Independentemente da decisão da Justiça no julgamento do major Lussati, o caso pode arranhar a imagem de João Lourenço e do MPLA?
AS: Poderá beliscar a imagem do Presidente, fundamentalmente a nível interno, porque estes casos vão dividindo. Este caso poderá trazer novamente aquela luta interna que dividiu o partido nos anos de 2017, 2018 e 2019. Nós estamos num período bastante sensível, em que o anterior Presidente está doente. Encontra-se no exterior do país, num estado de saúde crítico. Ora, essas pessoas que são objeto de investigação são próximas ao anterior Presidente e algumas também próximas ao atual Presidente. Qualquer mexida nessa estrutura vai comprometer a imagem do atual Presidente. Vai criar uma crispação.
DW África: Acredita que este caso representa a imparcialidade da Justiça angolana?
AS: Não, não representa. Este caso é um passo para a frente, mas não é a condição principal da separação do poder executivo do poder judicial, porque aqui andam mesmo casados.