1. Ir para o conteúdo
  2. Ir para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Autoridades de Moçambique tornaram "invisíveis" os traumas de guerra

Issufo, Nádia Adamo4 de novembro de 2013

Os abalos psicológicos do conflito de 16 anos nunca foram resolvidos e já são "ressuscitados" com a atual tensão político-militar. Os primeiros traumas sempre foram ignorados, tal como os que nascem agora, diz terapeuta.

https://p.dw.com/p/1ABVS

Durante a guerra civil, que opôs a RENAMO e o Governo da FRELIMO e terminou em 1992, cerca de 900.000 pessoas morreram e 250.000 crianças ficaram órfãs. A sociedade e a comunicação social pouco falaram sobre o que foi feito para minimizar os traumas de guerra dos moçambicanos. O fantasma do medo da guerra acordou e as populações fogem deseperadas das zonas de grande tensão. A DW África entrevistou Boia Efraime, psicoterapeuta e membro da Associação Reconstruindo Esperança.

DW ÁFRICA: Foi uma falha o facto de Moçambique nunca ter tido uma comissão da verdade para se falar das atrocidade da guerra civil?

Boia Efraime (BE): Eu penso que sim. O que está em causa é revisitar os erros cometidos no passado, num processo em que cada um assume a culpa individual e coletiva pela guerra, pela destruição e pelas atrocidades cometidas. E penso que é possível começar a ver o outro como um ser humano, como cidadão, como alguém útil no processo de construção e consolidação de um futuro comum. A não haver isto, não se estabelece a confiança.

Eu trabalhei com crianças-soldado. Não houve, por exemplo, o reconhecimento das atrocidades cometidas na guerra e das responsabilidades individuais e coletivas pelo que aconteceu. Houve uma tentativa de acusar o regime do Apartheid na África do Sul, o regime socialista na União Soviética e na RDA (ex-República Democrática da Alemanha), mas não houve um reconhecimento de que isto foi feito em primeira pessoa por nós moçambicanos.

DW ÁFRICA: E qual é a consequência desta situação não abordada?

BE: Penso que se continua a ver o outro como como um inimigo. É disseminado o pensamento de que a destruição do outro poderia ser a solução dos conflitos que temos em Moçambique. Isso nos mais variados níveis: psíquico, político, material. Esse cenário leva à situação que estamos agora a evidenciar.

DW África: Será que a aposta da RENAMO em símbolos bélicos, com o regresso do seu líder Afonso Dhlakama à base em Gorongosa, foi como brincar com fogo num país que ainda não ultrapassou os traumas de guerra?

BE: Penso que sim. Se invertêssemos a equação e colocássemos a FRELIMO no lugar da RENAMO, possivelmente, teríamos o mesmo resultado. A FRELIMO não tem confiança na RENAMO e vice-versa. E penso que esteve sempre presente a utilização do recurso da pressão militar. Se a RENAMO teve algum protagonismo na história moçambicana é porque manteve sempre o seu exército. Se não tivesse um exército, não seria vista pelo Estado como alguém que deve ser ouvido. Isso quer dizer que a Constituição do país passa pela integração de todos os moçambicanos e não pela partidarização das forças armadas, da polícia e dos mecanismos de distribuição de riqueza.

DW África: Como o trauma dos 16 anos de guerra civil se manifesta numa situação de conflito como a que Moçambique vive atualmente?

BE: Uma pessoa do Parlamento dizia-me que muitos debates políticos no próprio Parlamento eram de certa maneira irracionais, porque nas bancadas da FRELIMO e da RENAMO estavam presentes pessoas que, durante a guerra, combateram em lados diferentes e foram responsáveis por atos militares que levaram à morte de familiares de deputados de outra bancada. Vinha-lhe ao de cima sentimentos de raiva, confusão e agressão, porque, para ela, aquelas pessoas continuavam a ser responsavéis pelo que aconteceu.

DW África: Acha que a sociedade moçambicana e o Governo tomaram ou tomam em conta a questão do trauma?

BE: Não. Pretendeu-se fazer uma tábua rasa, fazer de conta que o conflito não existiu e que não houve responsáveis. No fim do conflito, não houve um reconhecimento da existência de crianças-soldado, não houve um processo oficial de desmobilização dessas crianças. Houve tentativas de reintegrá-las no exército, mas por não se querer aceitar que elas tinham combatido como soldados, houve um processo de continuar a negar a responsabilidade individual e coletiva do que aconteceu no passado. De certa maneira, essa responsabilidade é agora virada para os atores políticos, numa tentativa de demonização do outro.