Cabo Delgado: "Falta comunicação sobre intervenção militar"
12 de julho de 2021A União Europeia(UE) aprovou esta segunda-feira (12.07) uma missão de formação militar em Moçambique, que vai ajudar a treinar as Forças de Defesa e Segurança (FDS) para o combate ao terrorismo em Cabo Delgado.
Entretanto, desde a semana passada, o país começou a receber ajuda de militares do Ruanda e já espera a chegada de homens da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).
Mas não faltam críticas à forma como o Governo está a conduzir as diferentes intervenções. Em entrevista à DW, o especialista moçambicano em resolução de conflitos e políticas públicas Rufino Sitoe diz que já se verificam "falhas de comunicação" na gestão da ajuda militar e que Maputo deveria ter considerado os "pressupostos da democracia" ao admitir intervenções estrangeiras.
DW África: O Governo moçambicano pecou ao não informar previamente os órgãos de soberania, nomeadamente a Assembleia da República, e a população sobre a chegada de militares estrangeiros a Cabo Delgado?
RS: Obviamente que para admissão de militares poderia ter uma consulta um bocadinho mais alargada, que considerasse os pressupostos de democracia, porque é uma questão soberana. Eu, particularmente, não concordo que haja muitos atores a intervir ao mesmo tempo. A ausência de um processo de consulta pode não ter favorecido a decisão ou, pelos menos, o debate sobre as opções de intervenção militar em Cabo Delgado.
DW África: Faltou esclarecer melhor como vão decorrer as operações com os militares estrangeiros em Cabo Delgado?
RS: Há necessidade de debater-se melhor como se planeia esse tipo de cooperação. Parece que que não há muita informação, há sinais de que a coordenação desses esforços não estão a ser feitas de uma forma satisfatória e razão disso é o problema de comunicação que houve com a África do Sul por causa da chegada das forças do Ruanda ao mesmo tempo em que se está a coordenar os esforços por parte do SADC. Certamente há aqui um problema de comunicação. Em contexto de conflito a comunicação é chave para aumentar a efetividade dos esforços. Este é um problema que deve ser melhorado não só interna, como também com os parceiros que estão a ser convidados a intervir em Cabo Delgado.
DW África: Esses atritos podem pôr em causa as operações?
RS: Sem dúvidas, nós esperamos que esteja tudo alinhado, que as forças tenham certeza de onde vão atuar, quem também vai atuar ao seu lado e como é que vão coordenar para se saber o espaço de intervenção de cada uma das forças. Enquanto não houver esta coordenação, estrategicamente já é um pressuposto de fracasso dos esforços de combate à violência em Cabo Delgado.
DW África: E vai ser difícil para o Governo gerenciar essa divesas intervenções militares em Cabo Delgado?
RS: Pelo que se está a perceber agora, há alguma dificuldade. Só na própria gestão de comunicação já é indício claro de dificuldades, antes mesmo da própria intervenção.
DW África: Já há diversas denúncias de abusos e violações por parte das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique. Na sua opinião, a presença de militares estrangeiros pode aumentar as violações dos direitos humanos?
RS: Há sempre uma tendência de haver abusos dos Direitos Humanos em zonas de conflito. Obviamente este é um receio que se levanta, como é que se pretende gerir depois a questão dos abusos, como se pretende gerir estas violações que possam ocorrer. Não estamos a dizer que uma situação de conflito é limpa, mas é preciso que haja um plano de gestão dos abusos que podem advir das intervenções destas forças.
DW África: Entretanto, a União Europeia aprovou esta segunda-feira (12.07) uma missão de formação dos militares moçambicanos, inclusive com treino específico sobre os direitos humanos na proteção de civis. No seu entender, essa ajuda chega tarde?
RS: A ajuda é sempre oportuna enquanto decorre o conflito. Esta formação poderia ter sido antes, porque notou-se que havia alguma deficiência em termos de formação física ao nível das forças que intervém em Cabo Delgado. Isto acabou por minar as relações e o nível de confiança que existiam entre os militares e as populações. E olhando para a intervenção de outras é necessário que as nossas forças armadas estejam preparadas, não só para implementar estas medidas cívicas, mas também para monitorar a situação de outras forças em termos de gestão de abusos.
DW África: Houve muita discussão no nível político e diplomático até ao anúncio repentino dessas operações. Que interesses estariam por detrás da intervenção militar do Ruanda e da SADC?
RS: SADC tem um pacto de defesa regional. Ao nível da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) é uma intervenção normal e é o que se espera de uma organização regional. Agora, do Ruanda é preciso perceber logo à partida que pode ter interesses por detrás. Mas há indícios de que o Ruanda tem boa experiência em matérias de gestão de conflitos e que, se calhar, esteja interessado em continuar a construir esta reputação.