"Governo luta contra crianças que estão do outro lado"
21 de junho de 2021As famílias pouco podem fazer para evitar o rapto das suas crianças pelos terroristas em Cabo Delgado, explica João Feijó, pesquisador da ONG Observatório do Meio Rural (OMR). Mas a incapacidade não é uma exclusividade da população. Segundo o pesquisador, "não há grande possibilidade de acesso à justiça, não existem, inclusivamente, espaços para apresentar a queixa porque as autoridades também estão fugidas e estão impotentes para resolver essa situação". Entrevistámos Feijó sobre as crianças-soldado, um fenómeno que se expande no norte de Moçambique:
DW África: Qual é o ponto de situação do envolvimento de crianças no conflito armado em Cabo Delgado?
João Feijó (JF): O que está a contecer é que grupos de insurgentes armados que operam em Cabo Delgado estão a recrutar e a alargar as suas fileiras através do rapto de jovens. Esses jovens são adolescentes e crianças, a partir dos 12 anos e alguns pré-adolescentes, que são raptados, doutrinados e treinados militarmente e são eles que depois conduzem os ataques. Não é uma novidade em Moçambiqque, o fenómeno criança-soldado existiu na guerra dos 16 anos. Os soldados da RENAMO eram crianças-soldado, inclusivamente as tropas governamentais também recrutavam crianças nas escolas, a celébre operação "tira camisa" não é uma novidade. São centenas de crianças envolvidas.
DW África: Sabe o que os pais fazem para as salvar de um destino tão duro?
JF: Pouco podem fazer. Os familiares estão a fugir quando as crianças são raptadas e há a separação do agregado [familiar] e pouco podem fazer. Não há grande possibilidade de acesso à justiça, não existem inclusivamente espaços para apresentar a queixa porque as autoridades também estão fugidas e estão impotentes para resolver essa situação.
DW África: É possível, tomando em consideração o contexto de guerra, que as autoridades tomem alguma medida preventiva?
JF: Penso que o que está a acontecer no terreno é que as populações estão a ser pressionadas pelas forças armadas no terreno, quer as FDS [Forças de Defesa e Segurança] quer a insurgência. Então, há uma tendência da população em fugir a pressão. Isto de alguma forma alivia um pouco a população porque ao ir para o sul, zonas de reassentamento, deixa de estar vulnerável, quer às ameaças dos insurgentes e da sua violência, quer à desconfiança das FDS. Então, a evacuação da população daquela zona reduz a pressão sobre a população. A verdade é que o Governo está a lutar contra crianças que estão do outro lado, quer coagidas ou por vontade própria. E a fronteira entre os dois conceitos não é clara e então fica difícil para o Governo fazer assaltos a pessoas que não se sabe se são civis ou insurgentes.
DW África: Quer partilhar algum caso de envolvimento de crianças em confrontos armados em Cabo Delgado?
JF: As histórias que ouvimos de vítimas, que dizem que encontram meninos com arma na mão a regressarem da sua primeira missão muito contentes a contarem aquilo que fizeram, com orgulho, a contarem que realizaram tantas mortes, esquartejaram quantas pessoas... Então, estão a ser socializados naquele ambiente e estão a agir por imitação, estão a ver os mais velhos impulsioná-los para esta atividade a vangloriarem-se das ações de agressividade que fizeram, então estão a ser socializados desta forma, sentem-se mais integrados. Vai ser preciso fazer um grande trabalho de desradicalização destas crianças.
DW África: É possível recuperar a experiência que Moçambique teve neste campo durante a guerra civil dos 16 anos?
JF: Sem dúvidas. É preciso criar amnistias e centros de acolhimento para esses jovens e aprender com aquilo que não correu tão bem durante a guerra dos 16 anos, no sentido em que é preciso agora envolver não só as lideranças locais no processo de integração deles, mas também apoiar na formação profissional desses jovens. Esses jovens não aprenderam nenhum ofício, não frequentaram a escola, não são integráveis no mercado de trabalho. E nem tão pouco as suas comunidades de origem os irão aceitar de qualquer maneira. Mas têm de ser pessoas locais a participarem nisso, pessoas em quem têm mais confiança.