Caso BES: Quem deve a quem? Angola e Portugal no tabuleiro
17 de outubro de 2024Com início esta terça-feira (15.10), decorre no Campus de Justiça, em Lisboa, o mediático e complexo julgamento do ex-banqueiro português Ricardo Salgado, o então conhecido "Dono Disto Tudo”, num processo com 18 arguidos e mais de 700 testemunhas que respondem por mais de 300 crimes. Foi a falência do BES que, alegadamente, levou à queda do Banco Espírito Santo Angola (BESA), então administrado pelo ex-banqueiro luso-angolano Álvaro Sobrinho.
Em julho deste ano, e no âmbito de um outro processo, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa tinha notificado para julgamento o ex-presidente do Banco Espírito Santo Angola (BESA), Álvaro Sobrinho, Ricardo Salgado e mais três arguidos, validando na íntegra a acusação do Ministério Público que refere crimes de abuso de confiança agravado, branqueamento de capitais e burla agravada.
O MP acusou Sobrinho de 18 crimes de abuso de confiança agravado, cinco dos quais em coautoria, e cinco de branqueamento. Sobre Salgado recaem cinco crimes de abuso de confiança e um de burla qualificada, mas todos em coautoria.
De acordo com a justiça portuguesa, a acusação do processo BESA, revelada em julho de 2022, diz respeito à concessão de financiamento pelo BES ao BESA, traduzida em linhas de crédito de Mercado Monetário Interbancário (MMI). Foi devido a esta atividade alegadamente criminosa que o BES encontrava-se exposto ao BESA no valor de aproximadamente 4,8 milhões de euros.
Numa recente entrevista exclusiva à DW África em Lisboa, Álvaro Sobrinho disse que o seu processo "nada tem a ver com o caso BES” e criticou "as medicas de coação mais violentas jamais vistas em Portugal” a que ficou sujeito. Afirmou que o extinto BESA não teve responsabilidades na falência do BES em Portugal, como referiu a imprensa portuguesa.
João Paulo Batalha, ex-dirigente da Transparência Internacional Portugal e atualmente vice-presidente da Frente Cívica, disse que o Banco Espírito Santo foi, mais do que uma entidade financeira, uma verdadeira central de captura de poder político e económico, organizadora de corrupção à escala transnacional em Portugal, na Venezuela, em Angola e no Brasil.
DW África: O que se pode esperar deste julgamento que tem como principal arguido Ricardo Salgado, ex-banqueiro português que tinha boas relações com a elite política e empresarial portuguesa e angolana?
João Paulo Batalha (JPB): Este julgamento surge dez anos depois do início das investigações e da falência do Grupo Espírito Santo e quatro anos depois da acusação ter sido formalizada. É o principal julgamento de vários casos que estão em curso relacionados com o BES e com o Ricardo Salgado e o contributo mais importante que este julgamento pode dar é ajudar-nos a perceber como funcionou o Grupo Espírito Santo como uma autêntica central de corrupção e que relações é que estabeleceu com, não só a elite política e empresarial portuguesa, mas com as elites políticas e empresariais de vários outros países, incluindo a Angola.
E apesar de muitas acusações relacionadas especificamente com as operações do BES em Angola estarem noutro processo paralelo a este, conhecer o funcionamento da máquina do Banco Espírito Santo e da forma como Ricardo Salgado organizava aquelas estruturas e tomava aquelas decisões é importante e vai ter relevância, pelo menos indireta, para os outros processos que estão a ser tramitados e vão ser julgados à parte. Porque mostra como o Banco Espírito Santo foi, mais do que uma entidade financeira, uma verdadeira central de captura de poder político e económico e uma central organizadora de corrupção à escala transnacional em Portugal, na Venezuela, em Angola e no Brasil. E, portanto, é um julgamento até simbolicamente importante porque é o momento maior de responsabilização de Ricardo Salgado, que é visado em muitos processos por vários crimes diferentes mas este é o processo principal. Portanto, é aquele que tem não só maior atenção pública mas aquele que nos pode ensinar mais sobre a forma como o Banco Espírito Santo se estruturou e se organizou porque todos os outros processos, incluindo os processos que dizem respeito às atividades em Angola nasceram desta investigação que resultou neste processo principal. Portanto, continua a haver ligações entre os vários casos e os vários processos. E este caso, mesmo referindo-se sobretudo a crimes cometidos em Portugal nas operações portuguesas do Banco Espírito Santo, é muito importante para percebermos as relações do BES com Angola e outros países.
DW África: É de se admitir que neste julgamento fique de lado, ou será pouco relevante a relação que Salgado tinha com a elite política e económica de Angola, nomeadamente com Álvaro Sobrinho e Hélder Bataglia?
JPB: Álvaro Sobrinho e Hélder Bataglia são pessoas centrais em toda a estrutura do Banco Espírito Santo e do Grupo Espírito Santo, mais até do que apenas nos negócios de Angola, porque as suas atividades não estavam circunscritas à Angola, eles tinham um papel central na própria estrutura do Banco Espírito Santo. Portanto, Álvaro Sobrinho e Hélder Bataglia não são acusados neste processo mas são figuras importantes também deste processo. Portanto, há prova que, à partida vai ser produzida, há informação que virá a público neste caso que tem relevo, mesmo que não tenha relevo do ponto de vista criminal especificamente para as atividades de Angola, tem relevo para percebermos o funcionamento da máquina do Banco Espírito Santo e a sua ligação com a elite política e económica angolana. Portanto, essas ligações que foram transversais no Banco Espírito Santo em Angola, como noutros países, vão estar, eu diria, omnipresentes também neste processo porque têm a ver com o centro da estrutura de poder de Ricardo Salgado.
DW África: Os advogados de Ricardo Salgado sustentam que ele sofre de Alzheimer. Isto quer dizer que existe o risco de Ricardo Salgado não se lembrar ou omitir muitos dos seus atos enquanto administrador do BES e dos negócios que desenvolveu em Angola, envolvendo o BESA?
JPB: Bom, qualquer acusado em Portugal tem o direito de não testemunhar num processo criminal, independentemente até de estar ou não estar doente e, portanto, é provável que Ricardo Salgado se recusa de testemunhar, mesmo por essa razão, independentemente de ter Alzheimer. Os advogados têm usado esta questão da demência para tentar impedir a realização do julgamento. Isso já foi tratado neste processo e em vários outros.
A lei portuguesa é clara de que Ricardo Salgado, se não tinha Alzheimer no momento em que os crimes foram praticados e não tinha, então tem que ser responsabilizado pelo que fez porque não está livre de ser levado a tribunal. Se ele estivesse doente na altura em que cometeu os crimes, podia não ser responsabilizado por não estar na posse das suas faculdades, mas não é esse o caso. Portanto, o julgamento vai prosseguir. Os advogados estão a tentar julgar esta cartada da doença mental para tentar impedir um julgamento para além do que a lei permite, mas, sobretudo, parece-me que há uma estratégia de vitimização que pretende, sobretudo, já nem tanto defender Ricardo Salgado, porque é improvável que ele alguma vez venha a ser preso, mas proteger os ativos que ainda estão na posse dele e da família e, eventualmente, de alguns amigos.
O que se está a tentar impedir já nem é tanto a condenação de Ricardo Salgado, é tentar que o processo não chegue a um final que permita ao Estado português recuperar ativos. Sabendo nós que, ainda recentemente, o Estado angolano, o Presidente João Lourenço, falou na importância de vários países, incluindo Portugal, devolverem a Angola ativos roubados por via da corrupção, parece-me que a estratégia de defesa é tentar preservar ao máximo o dinheiro roubado por Ricardo Salgado no Banco Espírito Santo, tenha ele sido roubado em Portugal, em Angola, na Venezuela, no Brasil ou nos outros países onde o Banco fazia negócios.
DW África: Apesar de Álvaro Sobrinho estar num processo autónomo, é errado dizer, como referiu a imprensa portuguesa, que o BESA teve responsabilidades na falência do BES em Portugal? Ou foi a falência do BES que levou à queda do Banco Espírito Santo Angola (BESA)?
JPB: É difícil, na verdade, saber isso com rigor. Havia notícias de créditos ruinosos no BESA, a disposição a financiamentos que foram dados a figuras próximas do regime sem garantias e que não foram devolvidos. E isso terá provocado um impacto muito grande, e que depois foi coberto por uma famosa garantia soberana, passada ainda pelo Presidente José Eduardo Santos, e que não foi honrada.
Mas, também, a verdade é que o Banco Espírito Santo, a partir de Portugal, montou um esquema de negócios corruptos em Angola. Portanto, houve, digamos, um import-export de corrupção entre Portugal e Angola que movimentou muito dinheiro, que movimentou interesses políticos e económicos nos dois países e que depois caiu com estrondo, ao mesmo tempo, em Angola e em Portugal. Era importante que nos processos que estão a decorrer, neste processo principal e, também, especificamente, nos que dizem respeito aos crimes relacionados com o BES Angola, se pudesse verdadeiramente perceber este circuito de corrupção com origem em Portugal, e que se instala em Angola, que depois tem crimes específicos que poderão ter sido cometidos em Angola, mas que depois tem uma exposição brutal na fragilização da própria casa-mãe do BESA em Portugal.
Mas isso não está ainda claro, quais são as responsabilidades. Quem é que roubou dinheiro em Portugal e em Angola e por onde é que ele foi, fundamentalmente? E seria muito importante e muito útil que, no âmbito destes processos, esses detalhes fossem esclarecidos porque, em Portugal, há uma narrativa de que o BES Angola foi um grande fator na falência do BES em Portugal. Isso pode ter sido verdade, mas também há uma evidência de que, a partir de Portugal, se criou uma estrutura corruptiva em Angola que também roubou muito dinheiro ou ajudou a roubar muito dinheiro do povo angolano. E, portanto, essas contas deviam ser acertadas.
Para além do contributo dos processos judiciais, eu diria que, no momento em que, quer o Governo português, quer o Governo angolano, estão a fazer grandes promessas e proclamações de combate à corrupção, devia haver um impulso político para esclarecer estas ligações e para assumir as responsabilidades pelo que aconteceu, também no plano político, para percebermos como é que foi possível esta cascata de rapina entre Portugal e Angola.