"Comboio de Sal e Açúcar" também passa por Colónia
25 de setembro de 2017Antes da exibição de "Comboio de Sal e Açúcar", em Colónia, a DW África conversou com o realizador Licínio Azevedo sobre o filme que o trouxe à Alemanha, o seu trajeto profissional e também sobre o cinema moçambicano.
O realizador, que se assume moçambicano, embora tenha nascido no Brasil, contou-nos algumas histórias, tal como faz nos seus filmes e documentários.
DW África: Onde buscou inspiração para fazer este filme?
Licínio Azevedo (LA): Esta é uma história muito antiga. Nos anos oitenta, durante a guerra civil em Moçambique, eu ouvi falar nesse comboio que saía do litoral de Moçambique até ao Malawi, uma viagem de 700 quilómetros. Na época, essa viagem podia levar três meses, porque o comboio atravessava uma guerra, as linhas eram sabotadas e o comboio atacado. Muitas vezes as pessoas descobriam uma maneira de sobreviver. Na época, Moçambique era um grande produtor de açúcar, mas tudo foi destruído pela guerra e não havia açúcar nem para o chá. Então, as mulheres compravam o sal no litoral e levavam até ao Malawi, onde vendiam e compravam açúcar. Com esse negócio conseguiam sustentar as família durante vários meses. Tentei fazer um documentário, adoro documentários, mas não consegui meios financeiros. Diziam que éramos malucos, que seríamos atacados, perderíamos o equipamento e não haveria filme. Então, quando a guerra acabou, em 1992, fiz essa viagem de comboio várias vezes, entrevistando pessoas civis, militares, trabalhadores dos caminhos de ferro que faziam a viagem durante a guerra. Como o documentário, para mim, tem de ser feito na hora em que está a acontecer e já era passado, como sou escritor, escrevi um livro publicado em Moçambique pela Ndjira e também na África do Sul e Estados Unidos da América. Vinte anos depois, adaptei o livro para cinema, que é o que vemos agora. Quero dizer, é uma história que levou trinta anos para se transformar em filme.
DW África: Foi jornalista. Como aconteceu essa transição do jornalismo para o cinema?
LA: Era jornalista na América Latina antes de vir para Moçambique, onde me estabeleci há quarenta anos. Na América Latina era época da ditadura militar. Fazíamos jornalismo de oposição à ditadura militar, mas também procurávamos escrever de uma maneira diferente, baseado no novo jornalismo norte-americano. Então, não eram entrevistas, eram histórias com personagens onde havia ação. No Brasil era proibido informar sobre o desenvolvimento das guerras anti-coloniais, mas nós conhecíamos Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel e Eduardo Mondlane. Então, quando houve as independências [em África], eu decidir ir conhecer os meus irmão africanos. Fui inicialmente para a Guiné-Bissau, onde dei aulas de jornalismo e aproveitei para fazer entrevistas com antigos combatentes e pessoas que lutaram pela independência e escrevi um livro nessa linha. Eram histórias reais, mas escritas como se fossem contos. O livro foi publicado no Brasil e ficou conhecido em Moçambique. Logo a seguir à independência, 1977, convidaram-me para ir a Moçambique, mas para o Instituto de Cinema fazer esse trabalho. Fui como jornalista e escritor. A minha transição para o cinema levou vários anos, o meu objetivo não era fazer filmes, mas continuar a escrever. Mas, depois, envolvido naquele processo maravilhoso que foi a criação do cinema depois da independência, eu acabei transitando docemente para a realização. Primeiro através de documentários e depois documentários que já misturavam jornalismo com ficção. E depois agora com [ficção], este é o meu terceiro filme de ficção de longa metragem.
DW África: Então sente que continua a ser um contador de histórias, fazia-o na qualidade de jornalista e agora como cineasta?
LA: Acho que a própria história é que define o meio. Eu tanto posso optar por escrevê-la, se achar que funciona melhor assim, ou então fazer um documentário ou uma ficção.
DW África: Essa sua estadia nas antigas zonas libertadas também alimentou essa vontade de fazer cinema em Moçambique?
LA: Cheguei a Moçambique e fui enviado diretamente para as antigas zonas libertadas, para o Planalto de Mueda, onde fiquei vários meses a recolher histórias de camponeses, guerrilheiros, pessoas que lutaram pela independência, o que deu origem ao livro "Relatos do Povo Armado", grandes edições da vida política do nosso Governo. Esse livro publicado nos finais dos setenta deu origem à primeira longa metragem de ficção moçambicana, que foi "O Tempo dos Leopardos". Dizem que o filme é moçambicano, a história é moçambicana, mas o realizador e a equipa principal eram da Jugoslávia.
DW África: O filme "Comboio de Sal e Açúcar" ganhou dois prémios no XX Festival Khouribga, em Marrocos. É um estímulo, naturalmente...
LA: Isso é importante, mas o mais importante é que foi um dos raríssimos filmes africanos que teve a sua estreia internacional na Piazza Grande, no Festival de Locarno, um dos mais importantes do mundo. É uma projeção ao ar livre, cinco mil pessoas assistiram ao filme no ano passado, foi um grande sucesso. Estavam lá presentes quase todos os nossos atores principais e recebeu a crítica italiana de cinema. Depois disso, o filme ganhou o prémio no Festival de Joanesburgo de melhor longa metragem, também ganhou o prémio de melhor realizador no Festival do Cairo. E agora esses dois prémios no Festival de Khouribga de melhor realizador e melhor guião. Isso é bom porque incentiva, principalmente as pessoas que trabalham comigo, porque o cinema não é um trabalho individual. As pessoas dizem "o meu filme" e eu digo "nosso filme", porque sem a participação dos outros não se pode fazer nada. Sabendo que é um trabalho coletivo, cada um dá o máximo de si, e é disso que nós precisamos.
DW África: Como vê o facto de alguns filmes não ocidentais muitas vezes ficarem circunscritos a eventos paralelos em eventos internacionais?
LA: Hoje quase não há salas de cinema. No fim da época colonial tínhamos cerca de 80 salas e hoje temos cinco, duas em Maputo e três na Matola e agora vão ser abertas mais algumas. Mas a distribuição basicamente de produções norte-americanas. O nosso filme saiu nas salas de cinema há dois meses e foi difícil colocá-lo, porque os proprietários das salas não acreditavam que um filme moçambicano teria sucesso. Ficámos quatro semanas com a sala cheia e fizemos mais público do que as grandes produções norte-americanas. O nosso filme vai sair agora nas salas de cinema nos Estados Unidos, na França, Suíça e Portugal, na próxima semana. As coisas funcionam, é preciso trabalho, esse é um filme diferente, é classificado como um western africano, é um filme de guerra, de ação, com uma história de amor. E ao mesmo tempo é um filme que atrai o grande público que comunica.
DW África: O que representa o sal e o açúcar no seu filme?
LA: O amor e a morte.
DW África: Participa neste filme um ator angolano, Matamba Joaquim. Em termos de cooperação com outros países de língua portuguesa, qual é a experiência que o Licínio tem?
LA: O produtor principal deste filme é de Portugal, com o qual já tinha trabalhado no filme "Virgem Margarida" e também o Brasil. É uma produção que envolveu o ator angolano que vive em Portugal, mas também uma montadora do Brasil, o diretor de fotografia e o engenheiro de som são franceses, a equipa de efeitos especiais é sul-africana, porque estão habituados a trabalhar com grandes produções norte-americanas, uma capacidade que não temos em Moçambique.
DW África: Gosta de retratar histórias de mulheres moçambicanas. Que diferença nota entre as mulheres de há vinte anos atrás e as de hoje? Mais coragem, mais engajamento...
LA: Mais bonitas, sobretudo. Vestem-se de maneira melhor, menos conservadoras... Mas também a formação é fundamental. A nossa atriz, a Melanie, que esteve no Festival do Marrocos, foi imediatamente convidada para três longas metragens de outros países africanos, pela sua beleza, capacidade de expressão e por falar várias línguas.
DW África: Moçambique organiza cada vez mais festivais de cinema e com alguma visibilidade. Isso é sinónimo de desenvolvimento desta arte no país?
LA: É sinónimo de que há cada vez mais pessoas interessadas nisso. Há cada vez mais jovens interessados. Infelizmente, não temos escolas de cinema, a formação é feita na prática, como foi feita logo a seguir à independência, a fazer as coisas. Há muita gente interessada no cinema e por isso surgem esses eventos.
DW África: O que pensa do interesse dos alemães em relação ao cinema africano, e, principalmente, moçambicano?
LA: Há muitos anos atrás, fiz vários documentários para televisões alemãs. Neste momento, acho importante esse Festival de Colónia porque traz experiências diferentes dos países africanos e um grande interesse do público.
DW África: Nasceu no Brasil, mas vive em Moçambique há cerca de quarenta anos. Como se identifica na produção do seu trabalho?
LA: Sou um realizador moçambicano, porque fui para Moçambique como jornalista e escritor e sem objetivo de fazer cinema e lá comecei a fazer filmes. Então, sou um realizador moçambicano.