Como a madeira ilegal financia o terrorismo em Cabo Delgado
24 de setembro de 2021O comércio ilegal de madeira está a exacerbar a crise de segurança em Cabo Delgado porque constitui uma valiosa fonte de rendimento para os insurgentes da Ahlu-Sunnah Wa-Jama, um dos braços conhecidos do "Estado Islâmico" na África Austral. É o alerta do diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), Sérgio Chichava, e do especialista em relações sino-africanas do Instituto da Paz dos Estados Unidos, Henry Tugendhat.
Segundo os investigadores, o contrabando de madeira alimenta o descontentamento nas questões que a insurgência pode ser vista como solução viável - nomeadamente abusos laborais, perda de meios de subsistência devido à desflorestação e aumento da vulnerabilidade a condições climáticas severas.
No artigo "Al-Shabaab e práticas comerciais chinesas em Moçambique" - publicado esta quinta-feira (23.09) na "War on the Rocks", uma revista eletrônica norte-americana de análises sobre relações internacionais e políticas de segurança - Chichava e Tugendhat salientam que, embora a intervenção militar dos parceiros africanos no conflito com o braço do "Estado Islâmico" em atividade em Cabo Delgado, a resolução das múltiplas crises de insegurança e violência na região do norte de Moçambique vai exigir mais do que poder de fogo.
O artigo lembra que o comércio ilícito e a corrupção são práticas identificadas nas reservas de madeira moçambicanas há décadas. As reservas são historicamente saqueadas, desde o período colonial. "O comércio ilegal de espécies ameaçadas, narcóticos e pedras preciosas floresceu desde a independência até aos dias de hoje. Durante décadas, Cabo Delgado tem funcionado como centro do comércio ilícito entre a Ásia e a África".
Financiamento do conflito
Tais praticas não teriam sido inibidas nas áreas dominadas pelo grupo armado em atividade em Cabo Delgado. Pelo contrário, um estudo publicado em 2019 estima que o bando popularmente conhecido como "al-Shabaab" possa ganhar até "125 milhões de meticais [1,7 milhão de euros] por mês em madeira extraída ilegalmente" – um recurso que foge do controlo das autoridades fiscais moçambicanas.
Segundo o artigo, um perito local no comércio de madeira de Moçambique declarou que não se consegue ligar diretamente os comerciantes chineses ao al-Shabaab mas sabe-se que a madeira extraída em áreas controladas pelos militantes foi enviada para a China e Vietname.
"Ele explicou que o al-Shabaab recruta muitos tanzanianos e moçambicanos que fazem vendas em cidades portuárias mais seguras como Mtwara e Pemba. É provável que aqui estejam envolvidos comerciantes chineses", publica o artigo.
O artigo recorda que, em 2017, o Governo moçambicano proibiu a exportação de toros não processados, numa tentativa de encorajar o crescimento de indústrias locais, ampliar as oportunidades de emprego e combater a desflorestação. Apesar da ofensiva legal, segundo o artigo, a maioria dos produtos de madeira que deixam Moçambique para a China são toros não transformados. "Acredita-se que Moçambique seja o maior exportador de madeira ilegal para a China em todo o continente. Em 2020, estima-se que 99% das exportações totais de madeira do país se destinavam à China".
O papel das autoridades chinesas
O artigo cita o historiador moçambicano Yussuf Adam, para destacar que há iniciativas legais no âmbito da exportação de madeira de Cabo Delgado para o exterior através de operadores chineses. Contudo, tais investidores legais estão atualmente ensombrados pela coorte muito maior de comerciantes ilegais que pretendem lucrar neste espaço em grande parte não regulamentado.
Em agosto de 2020, por exemplo, o grupo armado destruiu uma serração chinesa chamada Mr. Forest, em Mocímboa da Praia. Tal como muitos migrantes chineses em África, estes comerciantes ilegais operam quase de certeza à margem da consciência das autoridades chinesas.
"Essa mesma serração foi citada pelo International Institute for Environment and Development, um instituto de investigação sediado no Reino Unido, pelas suas contribuições positivas para a economia local em 2017. Assim, enquanto alguns comerciantes chineses são coniventes com o al-Shabaab, outros parecem estar a ser maltratados por eles", salienta o artigo.
Segundo o artigo, as embaixadas chinesas não têm capacidade para supervisionar os seus nacionais envolvidos em tais atividades, e muitas vezes a sua única interação é tirá-los das mãos das forças policiais locais e enviá-los para casa.
"Mesmo que os funcionários chineses procurassem reprimir os seus cidadãos de se envolverem em práticas ilegais em Moçambique, as elites locais que têm um interesse nestes ofícios ilegais trabalharão para proteger os comerciantes chineses que os enriquecem", escrevem Chichava e Tugendhat.
O caso dos contentores em Pemba
Os autores lembram a colaboração da China com as autoridades moçambicanas quando da troca de informações sobre comerciantes ilegais que contrabandeavam 82 contentores para fora de Cabo Delgado em agosto de 2020. As autoridades locais recuperaram posteriormente 66 contentores em janeiro de 2021, e nove pessoas foram presas.
Na ocasião, o procurador da província de Cabo Delgado, Octávio Zilo, identificou a quantidade total de madeira recuperada como sendo de 2.032 metros cúbicos. Fontes moçambicanas relatam que em 2018, 600 mil metros cúbicos foram exportados apenas no primeiro trimestre.
"Os contentores devolvidos não representam mais do que meio dia de trabalho com base nesses números. Dada a escala do comércio ilegal de madeira, recuperar 66 contentores é uma gota no balde", escrevem os autores do artigo
Poderosos funcionários moçambicanos que protegem os operadores ilegais apresentam possivelmente o maior desafio para enfrentar esta crise. "De facto, a decisão de libertar um cidadão chinês responsável pela operação da custódia em fevereiro de 2021 foi tomada pelas autoridades moçambicanas. As autoridades chinesas ainda poderiam ter emitido um mandado de captura e julgamento na China se ele fosse suficientemente culpado para devolver esses 66 contentores, mas não o fizeram".
O artigo finaliza com um alerta sobre o envolvimento ocidental na absorção da madeira extraída ilegalmente das florestas moçambicanas. Segundo o texto, os fabricantes chineses de mobiliário e outros fabricantes compram madeira ilegal com vista a vender os seus produtos a nível internacional.
"As empresas ocidentais têm cadeias de abastecimento que passam pelas fábricas chinesas, passando pelos funcionários aduaneiros da China e de Moçambique".
Assim, Chichava e Tugendhat sugerem que as autoridades dos Estados Unidos e da Europa precisam de melhorar o rastreio e a aplicação da lei sobre a origem dos produtos de madeira acabados provenientes da China.