Quénia: papel da Cambridge Analytica nas eleições de 2017
21 de março de 2018A Cambridge Analytica, uma empresa de análise de dados e comunicação estratégica já estava debaixo de fogo por se ter apropriado de 50 milhões de perfis do Facebook com o intuito de influenciar resultados eleitorais. Agora, num vídeo gravado secretamente pelo Channel 4, com um repórter que se fez passar por um cidadão rico do Sri Lanka, é possível ver altos-cargos da empresa descreverem o seu papel nas contestadas eleições no Quénia em 2017.
"Reformulámos a imagem do partido por duas vezes, escrevemos o manifesto, fizemos pesquisas e análises, mandámos mensagens. Acho que escrevemos todos os discursos do candidato. Encenámos tudo, todos os elementos deste candidato", Mark Turnbull, diretor executivo da Cambridge Analytica disse à equipa de reportagem.
Turnbull falava de Uhuru Kenyatta, atual Presidente do Quénia depois de ter derrotado Raila Odinga numas eleições altamente disputadas em agosto do ano passado. A primeira vitória de Kenyatta chegou a ser anulada pelo Supremo Tribunal do Quénia devido a irregularidades. Depois do boicote do rival Odinga nas segundas eleições, Kenyatta voltou a ganhar, com 98% dos votos. Ao processo eleitoral seguiu-se uma onda de violência que terá causado a morte de dezenas de pessoas. Várias associações de direitos humanos queixaram-se do uso de força excessiva por parte da polícia contra manifestantes que se opunham ao Governo de Kenyatta.
Cambridge Analytica envolvida em escândalos
A Cambridge Analytica viu-se recentemente envolvida num escândalo no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, depois de surgirem relatórios que atestam que a empresa se apropriou de informação privada de mais de 50 milhões de utilizadores do Facebook, o que terá contribuído, nomeadamente, para apoiar a eleição de Donald Trump.
As imagens do Channel 4 mostram altos-cargos da empresa a explorar possibilidades de comprometer políticos, por exemplo, com subornos, trabalhadoras sexuais, ou através da disseminação de informações falsas na Internet. No vídeo, afirmam que estes métodos já foram usados em várias eleições pelo mundo fora.
No Quénia, as notícias falsas foram um fenómeno que se espalhou pelos vários canais de redes sociais durante a disputada campanha eleitoral. Estima-se que o Quénia tenha mais de 30 milhões de utilizadores de Internet, numa população total de 48 milhões. De acordo com um inquérito a nível nacional conduzido pela empresa de relações públicas Portland International, noventa por cento de cidadãos do país relatam terem visto ou ouvido falar em notícias falsas.
Shitemi Khamadi, da Associação de Bloggers do Quénia diz não haver provas de envolvimento estrangeiro em campanhas de notícias falsas, mas acredita que possa ter acontecido dada a realidade que pode constatar durante o período eleitoral.
"Havia muitas mensagens com discurso de ódio e linguagem agressiva, que não era habitual ver. Mensagens pelo Facebook, Google e Twitter que eram muito hostis e tinham como alvo principal Raila Odinga. Tinham o objetivo de fazer com que os seguidores do Jubilee, o partido de Kenyatta, fossem votar em grande número no candidato do partido”, conta.
Nem o Presidente do Quénia, nem o seu partido comentaram para já as revelações feitas pela reportagem do Channel 4.
Henry Maina, da Article 19, uma plataforma que, entre outras causas, luta pelo direito à informação e pelos direitos humanos, explica que esta polémica à volta do Jubilee será um desafio para o partido.
"Há um sentimento geral de desilusão e acho que não é pela incapacidade de responder como um partido. O Jubilee está agora a perceber que podia ter-se posicionado como um partido que respeita a lei, um partido que respeita a visão dos cidadãos, mas isto é um grande desafio para eles”, disse Maina à DW.
Campanha de Kenyatta envolvida em controvérsias
Não é a primeira vez que a campanha de Kenyata se vê envolvida em controvérsias com ligações a empresas de consultadoria estrangeiras. Já em dezembro do ano passado, a Privacy International, uma organização international que monitoriza Governos, tinha afirmado que o partido Jubilee beneficiou de campanhas que promovem a discordância nas redes sociais, através da firma Harris Media LLC, uma empresas sediada no Texas que já trabalhou com Donald Trump. Na altura, a Privacy International afirmou que tais ligações levantam questões sérias sobre o papel e a responsabilidade das companhias que trabalham em campanhas eleitorais.
O partido Jubilee negou ter recorrido aos serviços da Harris Media. Já a empresa americana não comentou, quando questionada sobre ao assunto.
Henry Maina sente que a democracia está a regredir em África, e estas novas revelações podem abalar ainda mais a confiança da população no sistema político do continente.
"Isto pode ser muito problemático porque leva os cidadãos a sentir que os governos chegam ao poder através de manipulação por parte de organizações estrangeiras que têm essa capacidade, e não pelo resultado do voto popular”, explica Maina.
Polémica promete continuar
A Cambridge Analytica já veio negar qualquer envolvimento ilegal em atividades eleitorais, no Quénia e outros países. A empresa alegou que os seus funcionários estavam apenas a entreter com humor a equipa do Channel 4. Um comunicado do entretanto ex-diretor-executivo Alexander Nix, disponibilizado no site da companhia, descrevia que a empresa não se envolve em esquemas de ciladas, subornos ou "armadilhas sexuais”, nem faz uso de informações falsas para qualquer fim.
Alexander Nix foi também uma das pessoas registadas pela câmera oculta da equipa do Channel 4. Após a sua suspensão, a Cambridge Analytica demarcou-se dos comentários do ex-diretor-executivo que foram registados em vídeo.
Entretanto, a polémica à volta da Cambridge Analytica promete continuar. A primeira-ministra britânica Theresa May apoia que seja feita uma investigação à empresa e o Parlamento Europeu já chamou Mark Zuckerberg, co-fundador e diretor-executivo do Facebook, para prestar declarações em relação aos dados de cidadãos europeus.