De libertador, a Presidente tirano: a Era de Robert Mugabe
15 de novembro de 2017Robert Mugabe tinha 56 anos quando conduziu o Zimbabué à independência do Reino Unido, em 1980, e assumiu a liderança do país como primeiro-ministro e, mais tarde, como Presidente, em 1987. Houve quem considerasse a ascensão do professor primário ao mais alto cargo político do país como uma recompensa pelas suas origens humildes numa família de camponeses.
Sem se deixar abalar pela saída em massa dos colonos logo após a libertação do país, Mugabe canalizou esforços com a promessa pública de que melhoraria a vida dos cidadãos. Para tal, começou por introduzir o ensino primário gratuito, bem como o acesso a assistência médica básica para quem tinha rendimentos baixos, duas medidas que no entanto chegaram a apenas uma percentagem reduzida da população.
As primeiras atrocidades
Em 1982, estala a contenda entre o partido de Mugabe, a União Nacional Africana do Zimbabué – Frente Patriótica (ZANU-PF) – e o seu antigo aliado Joshua Nkomo. Nessa sangrenta disputada pelo poder, Nkomo teve o apoio das etnias Ndebele que residem no oeste e no sul do país. Foi lá que as forças armadas leais a Robert Mugabe cometeram as piores atrocidades e violações dos Direitos Humanos após a independência do país. A quinta brigada militar, que foi treinada na Coreia do Norte, matou aproximadamente 20.000 civis. Muitos deles foram queimados vivos.
Em 1987, Nkomo e Mugabe fizeram as pazes e o Chefe de Estado nomeou-o vice-presidente do Zimbabué. Depois disso, o líder centralizou as políticas económicas na produção de cereais.
Longe de atingir os resultados esperados, milhares de cidadãos continuaram dependentes de ajuda humanitária, sem acesso a comida, água potável ou outras necessidades básicas.
Ainda assim, Robert Mugabe era retratado pelas rádios estatais como um herói nacional. “Um veterano político com qualidades de liderança distintas, o camarada Robert Mugabe ganhou as primeiras eleições democráticas do país em 1980 para se tronar primeiro-ministro do Zimbabué”, recordava a principal rádio do Zimbabué, repetidas vezes, nos anos 80.
O outro lado do Presidente escapava aos meios de comunicação estatais: um fervoroso católico que mantinha um relacionamento adúltero com a sua secretária, Grace Mugabe, uma mulher casada que se tornou na primeira-dama do Zimbabué depois da morte da primeira esposa do Presidente, em 1992.
Antes disso, Mugabe assumiu a Presidência em 1987 e recusou sempre reformar-se à medida que as notícias davam conta da deterioração do seu estado de saúde. “O partido irá encontrar um sucessor. Eu vim do povo. O povo na sua sabedoria irá selecionar alguém, assim que eu diga que me vou aposentar. Mas ainda não é a altura. Nesta idade eu ainda posso seguir em frente”, justificava-se.
Reforma problemática
Podem passar mais quatro décadas, Robert Mugabe será sempre lembrado pela sua desastrosa reforma agrária. Para a maioria dos zimbabueanos, as condições de vida pioraram a partir de 2000, quando o setor da agricultura, a espinha dorsal do país, entrou em queda livre, com a produtividade a atingir níveis miseráveis sem precedentes.
Nessa altura, Mugabe optou por dar início a um processo de nacionalização forçada das propriedades agrícolas nas mãos da população branca para as redistribuir pela população negra. O líder legitimou a medida com a “necessidade de inverter os desequilíbrios económicos” entre brancos e negros.
Mas foi Mugabe, a sua família e a elite partidária do ZANU-PF quem mais beneficiou com a medida que levou açambarcamento de várias explorações de agro-pecuária. Por outro lado, a mesma política deixou milhares de trabalhadores negros sem trabalho e sem casa.
Rapidamente o Zimbabué deixou de ser o celeiro de África, como era reconhecido na África Austral devido à sua produção remanescente de cereais, para ser um país com fome e à beira da miséria extrema.
Em 2002, os Estados Unidos, a União Europeia e vários países do Ocidente aplicaram sanções a Mugabe e à liderança do ZANU-PF, depois de várias queixas relatarem episódios fraudulentos nas eleições do país, sanções essas que depois foram utilizadas pelo próprio Mugabe como bode expiatório para justificar os problemas no país.
Em 2007, Mugabe introduziu uma política que obrigou as empresas estrangeiras no país a ceder a sua participação maioritária a zimbabueanos como forma de reverter os desequilíbrios coloniais.
Na altura, a principal rádio estatal do país voltou a bajular o dirigente: “Sua Excelência, o Presidente da República do Zimbabué, o camarada Robert Gabriel Mugabe, um líder altruísta e dedicado, um estadista, um nacionalista, um pan-africanista, um pai e um dinamizador, um homem com todos estes valores e muito mais”.
Houve, no entanto, quem assistisse à ascensão desmesurada de Robert Mugabe e que mantivesse uma visão crítica, como Obert Gutu, membro do partido Movimento para a Mudança Democrática, que fez saborear a primeira derrota de Mugabe pela mão de Morgan Tsvangirai nas eleições de 2008. “Quando nós alcançámos a independência em 1980, havia uma sensação de esperança e entusiasmo. Todos nós pensávamos que iríamos prosperar e criar uma nação. Mas, infelizmente, assistimos à traição das aspirações das pessoas e ao fortalecimento da tirania. Temos assistido à criação de um regime intolerante… Infelizmente a maioria dos zimbabueanos hoje são mais pobres do que eram em 1980”, comenta o político e advogado.
Descalabro financeiro
Desde que chegou ao poder, em 1980, Mugabe viveu anos a fio indiferente aos problemas nacionais. Enquanto a imprensa internacional noticiava casos de hospitais públicos sem medicamentos ou equipamentos sanitários, Mugabe organizava festas milionárias por altura do seu aniversário.
A inflação atingiu valores recorde e chegou a vários triliões por cento em finais de 2008, um número que atinge os 21 dígitos. Os preços duplicaram de dia para dia e o descontrolo financeiro levou o Banco Central a emitir notas de bilhões de dólares zimbabueanos. Hoje, circularam no Zimbabué principalmente moedas estrangeiras, como o rand de África do Sul ou o dólar norte-americano.
Luta pela sucessão
Os anos mais recentes da Presidência do professor primário ficaram marcados por alguns protestos da população devido aos atrasos no pagamento dos salários da função pública, mas principalmente pelos conflitos internos dentro do ZANU-PF, sobretudo devido à sucessão no poder. Emmerson Mnangagwa, durante muitos anos considerado o delfim do Presidente, foi humilhado e demitido de funções e fugiu do país após um braço-de-ferro com a primeira-dama, Grace Mugabe.
Figura controversa conhecida pelos seus ataques de cólera e dirigente do braço feminino do ZANU-PF, Grace Mugabe, teve sempre opositores tanto no partido como no Governo.
Na madrugada desta quarta-feira (15.11), Harare foi palco de uma inédita e aparente tentativa de golpe de Estado, protagonizada por militares próximos de Emmerson Mnangagwa, que culminaram com a detenção de Robert Mugabe, a esposa e alguns ministros.
Depois de 37 anos no poder, Robert Mugabe criou um país onde mais de metade dos cerca de 16 milhões de cidadãos continuam a precisar de ajuda humanitária para enfrentar a fome. No Zimbabué, as epidemias de cólera continuam a ser fulminantes e o seu combate depende da presença de organizações de ajuda humanitária.
Mugabe, líder do Zimbabué durante mais de três décadas, será provavelmente lembrado como um homem de duas faces: o combatente pela liberdade que prometeu uma nação próspera, mas que se tornou no ditador de um povo que vive abaixo do limiar da pobreza.