Como o fim do acordo de grãos com a Ucrânia afetará África?
21 de julho de 2023A Rússia retirou-se esta semana de um acordo mediado pelas Nações Unidas e pela Turquia para permitir a exportação segura de cereais ucranianos através do Mar Negro.
O Kremlin disse que estava a retirar-se depois de partes do acordo, feito em julho passado e prorrogado várias vezes, nunca terem sido cumpridas.
Durante vários meses do ano passado, desde o início da invasão russa à Ucrânia, os navios de guerra de Moscovo bloquearam as exportações de cereais do porto de Odesa e de outros portos, fazendo disparar o preço do trigo e de outros produtos alimentares.
A falta de cereais da Ucrânia - conhecida como o celeiro do mundo - exacerbou uma crise de segurança alimentar, especialmente no Médio Oriente e em África, onde a fome é abundante e as importações de cereais são elevadas.
Atualmente, existem preocupações quanto a uma repetição dessa crise alimentar.
O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, afirmou que, ao retirar-se do acordo, a Rússia é culpada de uma "contínua utilização de alimentos como arma" que prejudicaria milhões de pessoas vulneráveis em todo o mundo.
Onde está a maior preocupação com a segurança alimentar?
A suspensão do acordo sobre os cereais significa que a principal artéria para as exportações globais de alimentos foi cortada, disse o Programa Alimentar Mundial (PAM) à rádio Deutschlandfunk da Alemanha.
Nos últimos dois dias, um índice de contratos de trigo cotados em Chicago subiu mais de 12% em reação à retirada da Rússia.
Segundo o PAM, mais de 70 países já têm um grande número de pessoas a passar fome, muitos deles em África. "Isto vai tornar a nossa capacidade de alimentar as pessoas com fome muito mais difícil", afirmou Michael Dunford, diretor do Programa Alimentar Mundial (PAM) para a África Oriental.
Dunford afirmou ainda que já existem 80 milhões de pessoas na região em situação de insegurança alimentar aguda. A situação é causada por uma série de factores, incluindo conflitos, alterações climáticas, choques económicos e, claro, a "ressaca da COVID". Esta suspensão da iniciativa só iria agravar uma situação que já é terrível", acrescentou.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) alertou que a saída da Rússia "piora as perspectivas de segurança alimentar e corre o risco de aumentar a inflação alimentar global, especialmente para os países de baixo rendimento".
Prevê-se que a África Oriental, em particular, que já luta contra a fome severa, seja a mais afetada. Por exemplo, na capital da Somália, Mogadíscio, os preços do trigo, que duplicaram quando a Rússia invadiu a Ucrânia, caíram um quarto após a assinatura do acordo.
O país, juntamente com a Etiópia e o Quénia, enfrenta a pior seca das últimas décadas no Corno de África.
Noutros países, o conflito no Sudão provocou a deslocação de mais de três milhões de pessoas - e a potencial nova escassez de cereais poderá aumentar a dificuldade na prestação de ajuda.
De acordo com o sítio Web do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, cerca de 350 milhões de pessoas em todo o mundo são atualmente afectadas pela fome aguda.
O Ministério citou dados que mostram que, por cada aumento de um por cento nos preços dos alimentos, mais um milhão de pessoas são empurradas para a pobreza absoluta, referindo que, no ano passado, os preços dos cereais subiram 23%.
A Rússia queixou-se anteriormente de que o acordo não ajudou os cereais a chegar aos países pobres, referindo que a maior parte das exportações da Ucrânia se destinava à China e a países fora de África.
Qual é o estado do abastecimento alimentar mundial?
A agência noticiosa Reuters informou que as reservas mundiais de milho começaram a época 2021/22 num mínimo de seis anos, pelo que a invasão da Ucrânia pela Rússia levou a um salto significativo nos preços.
Um aumento acentuado das exportações do Brasil, no entanto, ajudou desde então a aumentar o abastecimento, juntamente com a reabertura do corredor do Mar Negro da Ucrânia em julho passado.
Com o pacto que criou um canal de navegação seguro, a Ucrânia pôde exportar 32,9 milhões de toneladas de produtos agrícolas, incluindo 16,9 milhões de toneladas de milho e 8,9 milhões de toneladas de trigo.
Antes do conflito, a Ucrânia exportava cerca de 25 a 30 milhões de toneladas de milho por ano, principalmente através do Mar Negro, e 16 a 21 milhões de toneladas de trigo.
O Departamento de Agricultura dos EUA previu que as existências globais de milho até ao final da época de 2023/24 estarão num máximo de cinco anos. No entanto, as existências globais de trigo estão mais apertadas e prevê-se que estejam num mínimo de oito anos no final da época de 2023/24, segundo dados do USDA.
Qual a probabilidade de a Rússia voltar a aderir ao acordo sobre os cereais?
As Nações Unidas disseram que tentariam fazer com que os representantes russos voltassem à mesa de negociações.
"O Secretário-Geral continuará a explorar todas as vias possíveis para garantir que os grãos ucranianos ou russos e os fertilizantes russos sejam lançados no mercado global ... Há uma série de ideias que estão a ser apresentadas", refere um comunicado da ONU.
O Presidente turco, Tayyip Erdogan, disse acreditar que Putin quer que o acordo se mantenha e que irá discuti-lo com ele quando se encontrarem pessoalmente em agosto.
Moscovo, por sua vez, indicou que só regressaria ao acordo sobre os cereais se as regras fossem flexibilizadas para as suas próprias exportações de alimentos e fertilizantes, que estão atualmente sujeitas a sanções ocidentais. A Rússia deu à ONU um prazo de três meses para cumprir as suas condições.
Apesar das sanções ocidentais, as exportações de cereais da Rússia beneficiaram do bloqueio das exportações ucranianas do ano passado. Estima-se que a quota da Rússia nas exportações globais de trigo tenha aumentado para 22,3% em 2022, de 16,6% um ano antes, de acordo com estatísticas do Conselho Internacional de Grãos.
A quota de mercado da Ucrânia caiu de 9,7% para cerca de 8,3% e, em 2024, poderá ter diminuído para metade em apenas dois anos.