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"Porquê deixei de ser terrorista"

Sandra Petersmann | mb
16 de outubro de 2017

Abu e Gardere trabalhavam como professores na Somália antes de se juntarem aos extremistas de Al-Shabaab. Mas porquê eles viraram as costas à milícia terrorista?

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Somalia Mogadischu | Ex-Mitglieder der Terrormiliz al Shabab
"Abu" e "Gardere" são dois ex-militantes do Al Shabaab.Foto: DW/S. Petersmann

"Abu" e "Gardere" não são os nomes verdadeiros dos dois homens que deram essa entrevista à DW. Eles precisam preservar suas identidades. Ao associarem-se à milícia extremista Al-Shabaab, eles esperavam muito mais do que do próprio Al-Quaeda. Eles são moradores da violenta região Lower Shabelle, que fica no Sul da Somália. Um território conhecido como bastião do Al-Shabaab. "Nós queremos um Estado islâmico. O Al-Shabaab luta contra a democracia para que a palavra de Deus seja ouvida. Por isso, eu tornei-me um militante”, contou Gardere.

Luta contra os pagãos

Gardere tem mais de 50 anos, duas mulheres e oito filhos. Ele usa uma touca amarela de crochê e óculos de sol. No meio da testa, destaca-se um sinal escuro – status conferido somente aos fiéis mais devotos. Segundo as declarações do ex-professor, ele entrou para a milícia extremista em 2008, quando tropas etíopes lideravam a luta antiterror na Somália. Nesse intervalo, 22 mil soldados da União Africana foram estacionados no país.

Não é possível saber a veracidade da história dos dois homens de maneira independente. Mas eles enfrentaram uma longa jornada somente para se encontrar com a equipe da DW. Eles disseram que era importante dar esse depoimento. E Gardere foi direto ao ponto: "Existem diferentes formas de Governo, como a democracia e a ditadura impostas pelos militares. Mas todas são feitas por pessoas. Somente o Estado Islâmico baseia-se na palavra de Deus. Deus é o único princípio. É dever de um muçulmano seguir os preceitos de Deus".    

Al-Shabaab - MP3-Mono

Civis assassinados

Deus ordena a explosão de carros-bomba? Deus manda terroristas suicidas às cidades da Somália para matar civis? Gardere demora a responder e olha para o chão. "A violência é a razão principal pela qual nós abandonamos a milícia. Nós queríamos lutar contra os infiéis, contra os invasores da Somália, por um Estado Islâmico. Mas a luta já não é mais essa. Hoje, nosso movimento mata civis. E isso, não apoiamos".

Gardere deixou os extremistas radicais também por vontade própria em 2016. Depois de oito longos anos, durante os quais o Al-Shabaab cometeu muitos ataques terroristas na Somália e nos países vizinhos, Quénia e Uganda, as tropas da União Africana foram enfim enviadas à Somália para combater a milícia islâmica.

Porquê Gardere demorou tanto para tomar a decisão de sair do movimento? "Nós tínhamos seminários regularmente. Ali, eles explicavam suas convicções e sempre acabavam nos convencendo de que uma mudança através da palavra de Deus seria possível. Nós acreditamos cegamente num futuro melhor e esperamos com paciência. Mas nada melhorou".

Também Abu acredita no Estado Islâmico. Segundo suas próprias declarações, ele associou-se ao Al-Shabaab em 2011. Naquele tempo, a fome dominava a Somália. Mais de 250 mil pessoas perderam suas vidas. Muitas morreram vítimas de cólera. "Naquela ocasião, o meu salário de professor não era suficiente para alimentar minha família. Eu entrei principalmente por razões financeiras. Eu precisava ganhar mais dinheiro.” Mas existia uma segunda razão. E Abu confessou em seguida: "A maioria dos jovens da minha vila já fazia parte do Al Shabaab. Eles faziam pressão, comportavam-se como líderes e até mesmo davam ordens aos mais velhos. Eu queria fazer algo contra isso".

O preço do Al-Shabaab

Somalia Al-Shabaab Kämpfer
Militantes do Al Shabaab em Mogadíscio, Somália.Foto: picture alliance/AP Photo/M. Sheikh Nor

Os dois homens contaram que fizeram parte da luta armada. Mas, segundo eles, foi por pouco tempo. Se eles mataram alguém, ficou em aberto. Mais tarde, eles foram enviados para trabalhar na administração de impostos da milícia islâmica. "O Al-Shabaab cobra um imposto à população: para sua moradia, pelo seu país, pelo seu filho. Eles também exigem mensalidades escolares, caso você queira enviar seu filho para a escola. A taxa custa cerca de cinco dólares por mês", informou Abu. Ele disse que se sentiu mal ao coletar o dinheiro. "Eu pessoalmente não recebi nada. Esperei, de verdade, que a minha família melhorasse de vida sob o domínio de Al-Shabaab, mas isso não aconteceu".

Abu tem 45 anos e é pai de quatro crianças. Ele também deixou que anos se passassem até abandonar a milícia em 2015. Ele teria esperado todo esse tempo porque o Governo não é uma opção. Nas regiões controladas pelos muçulmanos a vida era mais pacífica e mais segura. Principalmente, para as mulheres. O consumo de álcool e drogas era severamente punido. "As pessoas crêem no Al-Shabaab porque o Governo não é bom. Elas acreditam que os soldados do Governo saqueiam, matam, estupram”,  contou Abu. Ele disse mais: "O Al-Shabaab nunca mata em sua própria terra.” A Somália pertence aos dez países mais afetados pelo terrorismo. De acordo com o "Index Global de Terrorismo”(Global Terrorism Index), aproximadamente quatro mil pessoas perderam suas vidas devido a ataques terroristas, entre 2006 e 2015. 

Algo fica contraditório nos depoimentos de Abu e Gardere: a perceção dos desertores é seletiva. Nas suas argumentações, ambos ignoraram os ataques terroristas que ocorrem diariamente. Os dois são muçulmanos dececionados, mas ainda desejam a consolidação de uma teocracia, na qual o direito islâmico da Sharia seria a lei básica. No entanto, os dois afirmaram que querem dar uma chance ao novo Governo. Nenhum deles fala mal do aumento do envolvimento de tropas norte-americanas na Somália – apesar dos ataques com drones e forças especiais, que já acabaram por atingir civis.

Política de pequenos grupos    

"O Al-Shabaab está dividido", afirmou Abu. Muitos líderes são oportunistas. Eles se interessam somente pelo poder e pelo dinheiro, assim como os governantes. "Esses cabeças do Al-Shabaab recolhem dinheiro na região, onde estão lutando. Só que esse dinheiro nunca é usado para benefício da população local. Eles enviam esses montantes para os lugares de onde vieram, para seus próprios grupos. O Al-Shabaab faz uma política de pequenos grupos, exatamente como o Governo".

Desde fevereiro, a Somália tem um novo Presidente. A missão desse Governo é transformar o país numa democracia. O terrorismo e a violência de grupos armados devem pertencer ao passado. Para isso, eles estão a receber subsídios consideráveis do exterior – tanto militar quanto financeiro.

Há mais de 30 anos que a Somália não tem um Governo nacional. Vai custar muito tempo para construir um país de verdade. Os extremistas do Al-Shabbab estão sob pressão. Ainda assim, eles têm poder suficiente para executar complexos ataques terroristas  –  também na capital, Mogadíscio.

Por questões de segurança, Abu e Gardere vivem separados de suas famílias. Eles esperam voltar a trabalhar como professores. Eles também esperam receber ajuda de outros países por terem abandonado a milícia.