Domingos da Cruz sobre Lourenço: "Não espero nada de bom"
4 de agosto de 2020Domingos da Cruz faz uma profunda reflexão sobre a democracia no mundo de hoje no seu mais novo livro "Direitos humanos na era das incertezas". Nesta entrevista concedida à DW África, o investigador fala sobre o seu trabalho e não poupa críticas ao descrever a situação política e dos direitos humanos em Angola.
Para Domingos da Cruz, não se pode esperar nada de diferente do atual Governo, e as pessoas "já começam a despertar e a denunciar o que se está a passar" no país.
DW África: Assiste-se a uma crescente degradação dos direitos humanos, até mesmo nas democracias consideradas exemplares, como cita na sua obra. É caso para se afirmar que é um conceito em falência ou, pelo contrário, que as sociedades é que estão em decadência?
Domingos da Cruz (DC): Parece-me que nos últimos 15 ou 10 anos chegamos ao chamado ponto de declínio da democracia enquanto projeto humano. Mas há outro fator importantíssimo que está por detrás da chama degradação das chamadas sociedades abertas, é o caso do ultraliberalismo. Nos últimos anos houve ataques brutais do mundo financeiro contra a cultura política, hoje os políticos quase não conseguem tomar decisões que não estejam ancoradas ou dependentes dos mercados ou lobbies financeiros. O poder do capital trouxe uma nova forma de fazer política. Então, nesse sentido o dinheiro tem condicionado o aprofundamento da democracia e, claro, a consequência é a decadência.
DW África: Durante a presidência de José Eduardo dos Santos (JES) muito se defendeu o respeito pelos direitos humanos em Angola. Hoje, no consulado de João Lourenço, é praticamente tema enterrado. Será que as violações cessaram ou já não interessa mais denunciá-las?
DC: É verdade que durante o consulado de JES havia uma atenção maior em relação a violação dos direitos humanos. Não diria que hoje há uma silêncio absoluto relativamente ao que se passa na era do novo Presidente no que diz respeito à denúncia, à violação dos direitos humanos. Compreendo que é perfeitamente normal, que pelo fato de ter havido um Presidente por mais de 30 anos no poder, tendo sido substituído, de alguma maneira criou expetativas, e isso é humano. E claro, aqueles que sempre se bateram por Angola esperaram para ver o que o novo Presidente traria. Não é o meu caso, como é óbvio, eu tenho uma posição muito clara em relação ao novo Presidente, não espero nada de bom. Mas compreendo que a sociedade e outros tenham criado expetativas, mas passados dois anos a sociedade compreendeu perfeitamente que deste individuo não se pode esperar nada de diferente para que possa mudar Angola e já começam a despertar e a denunciar o que se está a passar. E não é verdade que já não há violação dos direitos humanos, existem bastantes. Hoje as pessoas continuam a ser submetidas a julgamentos sumários quando usam do direito a manifestação, e isso já aconteceu em Luanda, Benguela, Malanje...
DW África: Aos seus olhos como seriam os direitos humanos em tempos de incerteza?
DC: Penso que na era das incertezas devíamos apegar-nos aos direitos humanos como a nossa boia de salvação enquanto humanidade, numa altura em que vivemos um risco de extinção existencial global real, este seria o momento em que devíamos ver nos direitos humanos a nossa esperança, porque efetivamente a continuidade do mundo passa pelo respeito pela dignidade humana, e esta, por sua vez, passa por uma relação de paz com o mundo biológico porque está mais do que evidente que a nossa continuidade enquanto espécie depende também da saúde deste mundo.
DW África: Embora os direitos humanos tenham uma natureza universal, nem todas as sociedades se ajustam a eles. Quais seriam as alternativas nestas circunstâncias?
DC: Afirmar que o pacote total dos direitos humanos aplicam-se a todos os contextos e povos e culturas para alguns estudiosos é problemático e isso seu aso a grandes debates. Mas para além dessa visão universalista há aquilo que poderíamos chamar de universalismo minimalista, ou seja, existem estudiosos que entendem que não podemos afirmar um pacote global dos direitos humanos para todos os povos e culturas, mas podemos falar sobre a universalidade de um núcleo de direitos que se aplicam a qualquer povo e cultura. E um deles é o direito a vida, não podemos negar que o direito a vida aplica-se independentemente da geografia, da cultura, do povo, da etnia, da estrutura fenotípica do individuo, etc. E aforma-se ainda que há outros direitos que fazem parte do núcleo duro, que é o caso da alimenação.