Especialistas analisam confrontos na África do Sul
20 de agosto de 2012Muitos chamam-lhe já "o protesto mais violento desde o fim do apartheid" e, quatro dias depois, especialistas tentam encontrar uma explicação para o sucedido na passada quinta-feira, dia 16 de Agosto.
A polícia da África do Sul abriu fogo sobre centenas de mineiros grevistas em Marikana, no noroeste do país, perto da mina de platina da empresa britânica Lonmin, matando 34 pessoas, num confronto que os agentes justificam alegando autodefesa. 78 pessoas ficaram feridas e outras 259 foram detidas.
Os trabalhadores estavam em greve há uma semana, exigindo o triplo do salário actual de 4 mil rands, cerca de 400 euros mensais. Esta segunda-feira, a mina voltou a funcionar, apenas com um terço dos 28 mil mineiros, depois de a administração ter ameaçado despedir por justa causa quem não se apresentasse ao trabalho esta manhã. Apesar de tudo, a tensão continua elevada.
Más condições de vida explicam ações dos mineiros
O especialista em mineração, John Capel, da Fundação Bench Marks, não ficou surpreendido com o sucedido, afirmando que as mudanças na indústria extrativa desde o fim do apartheid, há 18 anos, foram mínimas e não passaram de declarações de boas intenções.
“Ainda se pagam salários miseráveis", explica, acrescentando que "os mineiros esperavam melhores condições de vida, ou seja, casas a sério para si e para as suas famílias, esperavam ter o suficiente para comer e que a assistência médica fosse garantida".
Capel conclui: "a realidade é que eles vivem em assentamentos de chapas de metal onduladas e favelas, sem electricidade e água”.
Empresa e governo podiam ter evitado confrontos
Os especialistas afirmam que os motins e as mortes poderiam ter sido evitados se a empresa extractiva de platina Lonmin tivesse tomado em consideração as recomendações do estudo elaborado há 5 anos pela Fundação Bench Marks ou o mais recente, datado do mês passado. Para além das péssimas condições de vida, a Fundação critica também a promiscuidade entre a economia e a política na África do Sul, nomeadamente as relações do ANC, partido no poder, com a indústria mineira.
De acordo com Capel, "essas empresas acreditam que podem fazer o que quiserem, porque estão devidamente protegidas politicamente". O especialista exemplifica: "à direção da Lonmin pertence o antigo combatente da liberdade Cyril Ramaphosa. Ele é o ex-chefe do sindicato dos mineiros, mas é também um multi-milionário na nova África do Sul".
Para John Capel, "esta promiscuidade interfere com a ação livre e independente do governo para manter a lei e a ordem, e para garantir a proteção dos trabalhadores. Para os membros do governo, então, os interesses pessoais são mais importantes do que os da população”.
O especialista considera que o governo poderia ter evitado a carnificina: “Deviam ter participado nas negociações e encontrado os mediadores certos. Na minha opinião, o problema é que o governo realmente queria enviar um sinal inequívoco, no sentido de que não vamos tolerar a vossas greves, porque elas podem prejudicar a imagem da África do Sul, a nossa economia e nossos investimentos. Vamos mostrar aos sindicatos e os trabalhadores quem manda", afirma o especialista.
"Só que as coisas não correram bem porque não se pode silenciar o enorme descontentamento dos mineiros. Eu acredito que haverá mais conflitos na mineração”, conclui Capel.
Discurso político agrava tensão
Lucy Holbourn, do Instituto de Relações Raciais, acrescenta que os políticos da África do Sul contribuem para alimentar a violência da população: “Há uma retórica política que ajuda. Por exemplo, a ordem na polícia “atirar para matar”, ou o próprio presidente, que tem repetidamente cantado a música do movimento de libertação 'traga-me a minha metralhadora'. Isto não é tudo para ser tomado literalmente, mas esse uso da linguagem cria um clima que indica que a violência é normal e aceitável".
Na opinião de Holbourn, "o presidente deve abster-se de tal uso da linguagem. Se o fizesse, isso enviaria uma mensagem clara à população”.
Um outro ingrediente que estimula as tensões sociais é facto de o fosso entre os ricos e os pobres na África do Sul ser um dos maiores do mundo. Quase 50% da população vive abaixo da linha de pobreza, a taxa oficial de desemprego é de 25%, os crimes ficam na sua maioria impunes, a polícia é mal treinada e a corrupção reina.
Protestos continuam na África do Sul
Não é de admirar que os sul-africanos estejam com raiva, diz Lisa Holbourn: “Há muitas áreas onde tudo correu mal. As acusações contra o governo vão desde corrupção ou má gestão até gastos inúteis. E a população está farta de desculpas, não querem mais desculpas, 18 anos após o fim do apartheid”.
Esta segunda-feira na localidade de Ga-Rankwa, vários milhares de pessoas ocuparam as ruas próximas do tribunal, onde cerca de 250 mineiros estão a ser acusados formalmente de distúrbios e vários outros crimes desde as primeiras horas da manhã.
Quer em Marikana, quer em Ga-Rankwa, a presença policial continua a ser elevada, com fortes dispositivos no terreno. Carros blindados e rolos de arame farpado estão a ser utilizados para fechar ruas e impedir novos confrontos.
O Governo sul-africano, que, no domingo, decretou uma semana de luto nacional em memória dos mortos nos confrontos, fez deslocar para o local a comissão interministerial de inquérito nomeada pelo Presidente Zuma, que já começou a trabalhar junto das famílias afetadas, da administração da Lonmim e das autoridades locais, com vista a esclarecer as circunstâncias que levaram aos confrontos e a apoiar as famílias, psicológica e financeiramente.
A Lonmin, por sua vez, comprometeu-se a pagar a educação dos dependentes dos mineiros mortos, bem como os funerais das vítimas.
Autora: Dagmar Wittek / Helena Ferro de Gouveia
Edição: Maria João Pinto / António Rocha