Sérgio Vieira diz ter a versão do assassinato de Mondlane
25 de junho de 2014Sérgio Vieira foi governador do Banco de Moçambique, ocupou um assento na Assembleia Nacional e chegou a ser ministro da Segurança do país.
Nos finais dos anos 50, quando Sérgio Vieira foi estudar para Portugal, passou, tal como tantos outros que viriam a fazer história, pela Casa dos Estudantes do Império. A Casa era então uma associação de estudantes, provenientes tanto de Portugal continental como das então províncias ultramarinas.
Com a sua fundação, o Governo colonial português pretendera controlar os estudantes e fomentar o sentido colonialista. O objetivo saiu logrado, porque a instituição acabou por ter um papel fundamental para as lutas de independência: tornou-se um espaço de troca de ideias e de fortalecimento dos sentimentos nacionalistas.
DW África: Foi na Casa que começou a ter mais consciência do que significava a causa da independência?
Sérgio Vieira (SV): Então, esses estudantes iam para lá e quase todos traziam as marcas, as heranças de sofrimento do colonialismo. De modo que era fácil travarmos uma ligação e uma identidade. Aí começou a crescer um ambiente determinado, a Casa tinha publicações, tinha um boletim, que tinha um valor cultural muito grande, tinha uma excelente biblioteca.
Que ela teve um papel muito importante, teve, naquilo que foi o nosso crescimento de pensamento e, inclusivamente, eu diria uma melhor consciencialização daquilo que devia ser o nacionalismo. E é bom lembrar que foi uma época em que se assistiu à independência do Gana em 1956, assistiu-se à crise do Suez, que nos marcou muito, à independência da Guiné-Conacri em 1958, a crise do Congo e o assassinato de Lumumba. Tudo isto nos tocou profundamente. Depois, em fevereiro de 1961, começou a luta armada de libertação nacional nas colónias com Angola com o 4 de fevereiro. De modo que era este o ambiente que nós vivíamos. Em 1961, então organizámo-nos para fugirmos e houve fugas, eu próprio fugi em dezembro de 1961.
DW África: Em Portugal fundou juntamente com outros estudantes a União Nacional dos Estudantes Moçambicanos. Como é que a UNEMO operava na altura?
SV: Bom, a UNEMO tem uma raíz aqui que era o NESAM, o Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique, que foi fundado por Mondlane no princípio dos anos 1940, depois continuou. E em Portugal, naquele momento, estava o último presidente do NESAM, que foi sucedido depois por Armando Guebuza, que era o Joaquim Chissano. E nós discutíamos: “agora como é que fazemos?” Então decidimos fundar a UNEMO e fundámos a UNEMO em finais de 1961/1962.
Fundamentalmente, a UNEMO operava no exterior entre os estudantes moçambicanos. Tínhamos ligações a outras associações de estudantes, a UGA, União Geral dos Estudantes da África Negra Portuguesa. O NESAM esteve aqui até que foi dissolvido. E tínhamos contacto com os nossos amigos, com os nossos companheiros ainda que mais novos.
DW África: Costuma dizer-se que, mais ou menos entre 1965 e 1967, a FRELIMO passou por uma crise. Em que consistiu essa crise?
SV: A crise começou a ocorrer em 1966/1967, depois 1968/1969 culminou com o assassinato de Mondlane. A crise foi desencadeada por elementos muito ambiciosos, como disse o Comité Central em 1969, uns tinham a ambição política, outros tinham a ambição económica. Havia o grupo da ambição económica e política com o Lázaro Cavandame, Silvério Nungo, Padre Gwengere, Uria Simango, etc.
A coisa chegou-nos ao ponto que, a certo momento, Cavandame veio propor que proclamássemos a independência em Mueda e, depois, iríamos libertando o resto do país. Nós dissemos: “isso é um absurdo, não faz sentido, se nos vamos concentrar em Mueda, o inimigo aniquila-nos!” Mas ele o que queria com isso era assentar a base do poder. “Havemos de proclamar um Governo quando tivermos ganho a guerra. Não vale a pena fazer antes. Porque senão vai desencadear quem é que é ministro disto, quem é que é ministro daquilo, ninguém está preocupado com isso.” E foi um bocado isso.
Depois, decidimos convocar o segundo congresso. Estes elementos reacionários queriam que nós realizássemos o segundo congresso no exterior e nós decidimos fazer no interior e fizemos no interior. E fizemos até na província de Niassa. E o segundo congresso reafirmou as teses fundamentais da FRELIMO, que já vinham do primeiro congresso. Então, rejeitados, desencadearam ações de assassinatos. Foi o Paulo Samuel Kankhomba que foi assassinado e depois assassinaram Mondlane.
DW África: Exatamente. Isso aconteceu a 3 de fevereiro de 1969, quando Eduardo Mondlane, então presidente da FRELIMO, foi assassinado, em Dar-es-Salam, na Tanzânia, com uma encomenda que continha uma bomba.
SV: Um livro do Plekhanov que foi preparado na Beira por um conhecido facínora, Casimiro Monteiro, que também esteve envolvido no assassinato do general Delgado.
DW África: Posteriormente foi incumbido de dirigir uma comissão de inquérito responsável por averiguar as circunstâncias do assassinato de Eduardo Mondlane. No entanto, persistem incongruências entre diferentes versões da morte de Mondlane. Qual é a sua versão?
SV: Eu não tenho a minha versão, eu tenho a versão. Houve uma asneira que alguém publicou de que Mondlane tinha sido assassinado no escritório – é mentira, ele não foi assassinado no escritório. Ele recebeu a encomenda quando estava a sair do escritório, já estava no carro e foi Silvério Nungo que lhe trouxe a encomenda. E ele costumava sair do escritório e ir trabalhar para uma zona, Oyster Bay, porque estava calmo e também havia um outro problema, Mondlane gostava de andar muito a pé, descalço, na praia, porque tinha os pés chatos. E então necessitava de fazer esse exercício para depois aguentar as marchas que nós fazíamos. E quando ele abriu a encomenda, rebentou. Não houve outra versão, essa foi a versão verificada pela Interpol, pela polícia tanzaniana, por nós próprios.
DW África: Há historiadores que dizem que a FRELIMO se apropriou da história de Moçambique. Acha que a história deste país precisa de ser reescrita?
SV: Quem é que lutou pela libertação nacional? Foi quem? Vamos inventar forças que lutaram para libertar Moçambique quando nunca existiram? Não, não houve apropriação nenhuma. Mencionam tal e tal organização que existia, mas nunca existiu dentro de Moçambique, existiu fora, nunca se preocupou. É como o 7 de setembro: “nós também queremos”. “Querem o quê? Ocuparam a rádio, mataram pessoas, querem o quê?” Era porque a FRELIMO se apropriava da história de Moçambique? Era porque Portugal negociou com a FRELIMO? Com quem é que Portugal ia negociar?
DW África: A 25 de abril de 1974 deu-se a Revolução dos Cravos em Portugal. Como é que recebeu a notícia da revolução?
SV: Nós tínhamos uma boa organização, tínhamos gente que estava em Portugal. E eu lembro-me de um grande jornalista que já morreu, o moçambicano Leite de Vasconcelos. O Leite de Vasconcelos foi expulso de Moçambique pela PIDE e trabalhava na Rádio Renascença e estava ligado a nós. E o Leite de Vasconcelos deu-nos a informação da preparação do Movimento das Forças Armadas e deu-nos a informação de qual era a música que ele ia pôr, que era a música do Zeca Afonso, que também foi expulso de Moçambique (foi professor na Beira e também foi expulso de Moçambique), quer era a “Grândola Vila Morena”. Sabíamos que Spínola e Kaúlza queriam preparar outros golpes e houve o tal das Caldas e, na noite de 24 para 25 de abril, quando a rádio começou a dar as informações em Portugal, vieram-me acordar, disseram: “passa-se isto”. Eu disse: “qual é a música que deram?” “É esta música”, “Então ok, é um bom golpe.” De manhã, informei o camarada Samora.
DW África: Valeu a pena lutar pela independência do seu país?
SV: Sem dúvida nenhuma que vale a pena um país libertar-se do colonialismo e do racismo. Se eu vejo as diferenças que aconteceram aqui: um não branco não podia andar na cidade sem passe depois do pôr do sol. Na minha província natal, que é uma vez, duas ou três vezes maior do que Portugal, em Tete, quando eu fui para a escola primária tive sorte, porque lá, na vila de Tete, havia uma escola primária oficial e não havia outra, em todos os 104 mil quilómetros quadrados. Naquela província toda só havia um médico.
DW África: Vê os ideias da luta armada refletidos na realidade de Moçambique hoje em dia?
SV: Por exemplo, a terra ainda é uma conquista do povo. E isso é fundamental, não sermos estrangeiros na nossa própria terra. O surgimento do ensino privado, da medicina privada, de alguma maneira, pôs em causa aquilo que nós queríamos, que era uma democratização real do ensino e da saúde. E hoje, bom, há um ensino público, há um ensino privado, o ensino privado é para certas elites, porque se paga e bem. Há medicina privada para certas elites, que se paga e bem. Isso não era o que queríamos, mas pronto.
DW África: Que balanço faz destes 40 anos de independência?
SV: Avançámos muito. Em todos os campos avançámos muito. Há pequenos recuos, a distribuição da riqueza não se está a fazer da melhor maneira, mas, de um modo geral, avançámos muito. Vivemos melhor agora do que vivíamos antes, em toda a parte do país, do Rovuma ao Maputo.