Explosão em Beirute: ONG acusa autoridades de negligência
3 de agosto de 2021"As provas implicam altos funcionários libaneses na explosão de 4 de agosto de 2020, em Beirute, que matou 218 pessoas, mas problemas sistémicos no sistema legal e político do Líbano estão a permitir-lhes evitar a responsabilização", acusau a HRW num relatório divulgado esta terça-feira (03.08).
No documento, a ONG recomenda que uma missão de investigação independente da Organização das Nações Unidas (ONU) conduza o seu próprio inquérito, e defende a aplicação de amplas sanções internacionais contra os "implicados nos abusos e esforços em curso para impedir a justiça".
A explosão de 4 de agosto de 2020 de um carregamento de fertilizante de nitrato de amónio armazenado no porto de Beirute durante seis anos matou mais de 200 pessoas, "numa das maiores explosões não-nucleares do mundo", ressaltou a HRW.
A explosão fez mais de 6.500 feridos, 300.000 deslocados e destruiu de forma generalizada a cidade, com estimativas da ONU a apontarem para cerca de 9.700 edifícios danificados ou destruídos.
Mas um ano depois da tragédia, não há culpados pelo acidente.
"Criminalmente negligentes"
O relatório de 126 páginas da HRW, divulgado um dia antes do primeiro aniversário da tragédia, identifica altos funcionários do Governo, alfândegas, Exército e agências de segurança que estavam conscientes do carregamento e dos seus perigos, mas não tomaram as medidas necessárias até à explosão.
"Várias autoridades libanesas foram, no mínimo, criminalmente negligentes, segundo a lei libanesa, no manuseamento" do carregamento de nitrato de amónio, aponta o relatório, que se baseia em entrevistas e centenas de documentos oficiais, incluindo material não publicado anteriormente.
Ainda de acordo com a ONG, as provas sugerem que "alguns funcionários governamentais previram e aceitaram tacitamente o risco de morte colocado pela presença do nitrato no porto".
Omissão do Estado
À luz da legislação libanesa, segundo a HRW, a ação dos funcionários suspeitos pode "equivaler ao crime de homicídio com intenção provável e/ou de homicídio involuntário".
"Ao abrigo do direito internacional dos direitos humanos, a omissão de um Estado em agir para prevenir riscos previsíveis à vida viola o direito à vida", considera a ONG.
A organização não-governamental recomenda sanções contra os "funcionários implicados em violações contínuas dos direitos humanos relacionadas com a explosão de 4 de agosto e esforços para minar a responsabilização".
Estas sanções, segundo a HRW, "proporcionariam um efeito de alavanca àqueles que pressionam pela responsabilização através de processos judiciais domésticos".
Erros antes da explosão
De acordo com a investigação da organização de defesa dos direitos humanos, as falhas começaram em 2013, logo após a chegada dos químicos a Beirute a bordo do Rhosus, um navio de bandeira moldava que alegadamente navegava da Geórgia para Moçambique.
"Os funcionários do Ministério das Obras Públicas e Transportes descreveram incorretamente os riscos da carga nas suas solicitações para descarregar a mercadoria", disse a HRW.
Também "armazenaram conscientemente o nitrato de amónio no porto de Beirute ao lado de materiais inflamáveis ou explosivos durante quase seis anos", mesmo depois de receberem relatórios a avisar que o produto químico era "extremamente perigoso".
Por seu turno, os funcionários da alfândega, que foram alertados pela primeira vez sobre os produtos químicos perigosos em 2014, poderiam ter agido para retirar o material do porto, mas não tomaram as medidas adequadas para tal, revela a HRW.
Quanto às autoridades militares, a HRW disse que não tomaram qualquer "medida aparente para garantir a segurança" do 'stock' e não assumiram sequer a obrigação legal de aprovar a importação e inspecionar material que podia ser utilizado no fabrico de explosivos.
A Agência de Segurança do Estado libanês, que investigou a carga de nitrato de amónio no porto de Beirute antes da explosão, foi lenta em relatar a ameaça aos altos funcionários do Governo e forneceu informações incompletas sobre os perigos que o produto químico representava, denuncia a HRW no seu relatório.
O então primeiro-ministro, Hassan Diab, disse que só recebeu informações sobre o carregamento em junho de 2020, apenas dois meses antes da explosão, e admitiu à HRW que depois se esqueceu do assunto.
Impunidade
Entretanto, a diretora da HRW para a área de crises e conflitos, Lama Fakih, disse que, apesar da devastação provocada pela explosão, "os funcionários libaneses continuam a escolher o caminho da evasão e da impunidade em detrimento da verdade e da justiça".
"Um ano mais tarde, as cicatrizes desse dia devastador permanecem gravadas na cidade enquanto sobreviventes e famílias das vítimas aguardam respostas", acrescentou.
A HRW concluiu que a investigação interna é "incapaz de fazer justiça de forma credível" e, por isso, solicitou uma missão de investigação mandatada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.