O ilustre professor de dança negro Herculano Mercês
23 de janeiro de 2021Herculano Mercês foi um distinto professor negro de dança de salão na Lisboa dos anos 1830 a 1840. Não é certo se a sua origem teria alguma ligação com os descendentes de africanos escravizados que antes viviam numa comunidade na capital portuguesa.
Mas o dançarino, praticamente desconhecido nos meios académicos, despertou o interesse do escritor angolano Aristóteles Kandimba, que em breve vai lançar um livro sobre Herculano Mercês, depois de uma longa investigação entre a Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional de Lisboa.
"A Balada de Herculano Mercês", obra inédita – uma edição do autor baseada em factos reais – é fruto de uma apurada pesquisa e acaba por desvendar quem é este "ilustre e quase desconhecido mestre de dança" que, em 1839, chegou a ser indicado para professor do Conservatório Nacional de Lisboa, escola de ensino de música, dança, teatro e cinema fundada em 1936 e extinta em 1983.
Dançarino exímio
Herculano Firmino das Mercês era o seu nome completo, considerado um dançarino exímio por volta de 1830. Supostamente, no ano de 1840, já estaria a dar aulas como professor de vários estilos de dança, nomeadamente danças de salão, que no momento "incendiavam" Lisboa.
"Eu tive que pesquisar sobre quais as danças que, naquela altura, eram as mais populares e fiz a conexão, através de alguns dos seus estudantes que também viriam a dar aulas", revela Aristóteles Kandimba, pessoa interessada na história da presença africana em Portugal. "Pelo que eu entendi", acrescenta, "ele era professor de polka e de valsa", entre outras mencionadas num dos livros que serviram a sua pesquisa.
Herculano Mercês viveu no tempo em que já havia uma população significante de africanos, principalmente no centro de Lisboa. Mas o seu nome não aparece em mais nenhum livro escrito nos últimos 40 a 50 anos. Interroga-se se o professor, que alguns anos depois se tornou "bastante famoso", era descendente da velha comunidade originária dos grupos escravizados ou se era alguém que teria vindo de uma das então colónias portuguesas em África ou do Brasil.
Professor do Conservatório?
Na narrativa, Aristóles Kandimba fala dessa fase do apogeu de Herculano Mercês, que viria inclusive a ser indicado para professor do Conservatório Nacional de Lisboa. "Estranhamente não foi escolhido, não sabemos porquê", refere. "Um pouco estranho porque alguns dos seus alunos foram escolhidos e ele não", acrescenta perplexo, aludindo ser esse o período em que, supostamente, começaram a evidenciar-se, não de forma declarada como hoje, alguns laivos de racismo institucional na sociedade portuguesa.
O que fascinou o autor foi a mestria do dançarino negro, "leve como um pássaro", considerado dos professores mais cotados de então, mas que não aparece nos trabalhos de investigação académica mais recentes. Em várias obras antigas, que consultou durante a sua pesquisa, ficou a saber de personalidades negras de Lisboa que se destacaram no movimento cultural da cidade.
Nos bairros da capital portuguesa, onde estava a matriz do fado, "havia fadistas negros e negras, como José Luiz e Cartuxa, que, como lembra Kandimba, também ninguém menciona". Eram negros que se associavam a Maria Severina, uma expoente máxima do fado de então, que na altura "era visto como coisa de marginalizados".
Nada consta sobre a data de nascimento de Herculano Mercês, nem tão pouco quando morreu exatamente. O mais provável, pela narrativa do escritor e jornalista português de então, Francisco Leite Bastos, nascido em 1841, é que H. Mercês estaria vivo entre 1850 e 1870. É inconclusiva, e mercê de mais investigação, a alusão sobre a sua morte. Leite Bastos diz num texto seu que "o preto Herculano Mercês" teria "falecido antes de 1850".
O certo é que a sua figura é praticamente desconhecida pelos historiadores. Não se encontram muitas referências biográficas sobre ele. "Nenhum académico conhecia a figura ou a gravura feita há cerca de 200 anos", confirma Kandimba, que em 2019 publicou "O Livro dos Nomes de Angola", fruto de uma recolha de cerca de dois mil nomes de origem bantu.
Que interesse despertou o dançarino?
O interesse pelo dançarino surge depois do regresso de Aristóteles Kandimba a Portugal, em 2016, vindo dos Estados Unidos. Estava a terminar o seu livro sobre os nomes de origem bantu.
Num período de pausa, na Biblioteca do Seixal, encontrou uma obra a retratar os dançarinos de Portugal. Foi folheando sempre na expetativa de encontrar algo ligado a África, até que se depara com uma página e meia ilustrada com cópia de uma gravura sobre um dançarino negro, feita por volta de 1830 ou 1835.
Tomou nota da informação que leu mas não se preocupou, na altura, em dar continuidade à "descoberta". Só recentemente, há cerca de um ano, teve tempo para iniciar a pesquisa sobre o referido dançarino negro. Desenvolveu vários contactos, nomeadamente com pessoas e instituições informadas sobre a presença africana em Portugal. Estas nada sabiam a respeito de Herculano Mercês.
Kandimba decidiu aprofundar a pesquisa até encontrar vários trechos sobre ele em três livros antigos, publicados entre 1901 e 1903. Um destes livros foi escrito há cerca de 60 anos, o qual dava conta da existência de uma gravura do dançarino na Biblioteca Nacional de Lisboa. Também aí nada se sabia sobre ele – adianta –, o que lhe pareceu estranho.
O escritor não desistiu. Prosseguiu a busca na Torre do Tombo, em Lisboa, onde também lhe foi dito que não havia nada registado com aquele nome. "Fui procurando as outras referências nesse livro, nomeadamente artigos e crónicas centenárias, sobre as caraterísticas do Herculano Mercês, onde é que ele dava aulas", explica.
As descrições eram pouco objetivas. Só mais tarde, por intermédio de um verso no referido livro a exaltar a figura do professor, é que descobre a sua existência na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Trilogia
O novo livro de A. Kandimba, que tem a Associação "Batoto Yetu" como um dos patrocinadores, faz parte de uma trilogia. O segundo versará sobre a história de um santo negro de uma aldeia no Porto, a norte de Portugal, que era supostamente um escravo. A terceira publicação, igualmente ainda no prelo, será sobre a mulher negra africana em Portugal.
O autor quer enquadrar a obra, para conhecimento público, nas comemorações da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024) decretada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Considera que este é mais um mote para se dar continuidade ao debate sobre a presença africana em Portugal.
E, na opinião do escritor, o Conservatório Nacional de Lisboa devia "mostrar um pouco mais de interesse" em explorar mais o histórico do dançarino e "reconhecê-lo como mestre de dança" da capital portuguesa.