Cabo Delgado: Para quando o fim dos desmandos das FDS?
17 de julho de 2020Saques, brutalidade, discriminação, desrespeito por parte de quem jurou defender a população e a pátria são apenas alguns dos abusos denunciados crescentemente pela população de Cabo Delgado, no contexto da insurgência.
As vítimas têm exposto as transgressões das Forças de Defesa e Segurança (FDS) tanto nas redes sociais, como na imprensa.
"Vivo com um colega, [certa vez] eu estava a cozinhar e ele saiu para comprar refresco e foi interpelado pelas FDS, foi interrogado para saber de onde saía e para onde ia. Ele disse que ia comprar algo em falta em casa, a cerca de 10 metros de distância da nossa casa. Pediram-lhe o documento de identificação, ele não tinha. Ligou-me e eu fui para lá com o documento dele, mas mesmo assim exigiram "refresco" [suborno], revela-nos em anonimato um ex-residente de Macomia, um dos distritos preferenciais dos insurgentes.
E o denunciante recorda ainda que nem se quer "foi decretado o recolher obrigatório, mas vezes sem conta na calada da noite se você é encontrado [pelas FDS] é obrigado a cumprir com tudo o que eles quiserem".
"Precisamos de uma força que tenha respeito pela população"
Excesso de zelo, relativizam alguns. Por outro lado, vozes mais sonantes acreditam que as penosas condições em que opera o exército estarão a motivar tal perversidade. Contudo, os militares têm uma liderança, o que faz ela? Estará o exército regular descontrolado ou descomandado?
Para o bispo de Pemba, dom Luís Fernando Lisboa, "não é possível esperar um caso, uma denúncia para que possamos fazer alguma coisa. Se há algum exagero ou descontrole por parte das autoridades, nós sabemos que há denúncias. É preciso, de facto que sejam denunciados, porque as autoridades, incluo as FDS, devem ser os primeiros a respeitarem os direitos humanos".
E o líder religioso apela: "Precisamos de uma força que tenha respeito pela população. E para nós exigirmos respeito precisamos também dar o respeito. Nós esperamos das FDS respeito pela população, que façam o seu trabalho sem desmandos e sem descontrole, porque isso pode aumentar ainda mais o sofrimento dessa guerra".
"Abusos mostram claramente a descoordenação institucional"
Embora o Presidente da República, Filipe Nyusi, já tenha condenado os desvios comportamentais do seu exército, os abusos não cessam.
"Isso é path dependent [dependência de trajetória]. No conflito dos 16 anos parte dos abusos foram perpetrados pelas FPLM, houve aldeias e colunas (de viaturas) atacadas pelas FPLM", lembra Adriano Nuvunga, diretor do Centro para Democracia e Desenvolvimento.
Para o pesquisador, "não surpreende este tipo de abusos [em Cabo Delgado], mostra claramente o desalinhamento, a descoordenação institucional entre as altas hierarquias e os comandos mais operacionais na questão do conflito em cabo Delgado. É uma questão de desacerto sobre como se aborda o conflito em Cabo Delgado."
Ainda do palco dos confrontos chegam relatos de que parte da violência das FDS é contra populares que supostamente dão guarida aos insurgentes e guardam o seu material de guerra.
Mesmo que se comprove, o comportamento das FDS representaria uma gritante violação dos direitos humanos. É sobejamente sabido que o medo pode determinar o apoio dos populares, e mesmo que o apoio aos insurgentes seja por simples convicção, não deixaria de constituir crime.
Qual é a importância da ética e moral para as FDS?
Contudo, há aqui fatores subjetivos que, ao que tudo indica, estariam a ser transgredidos: a ética e a moral, valores, em princípio, intransacionáveis. É possível, depois do caldo entornado, passar valores a um exército de barriga vazia?
"Em relação a desmoralização eu não posso dizer nada porque desconheço", afiança o bispo de Pemba, para depois sublinhar: "Agora, todo o grupo que tem um papel na sociedade, ele precisa de ser bem preparado, porque se não ele não cumpre bem a sua missão".
Entretanto, o líder religioso revela: "Nós como igreja temos na Universidade Católica um departamento de ética, cidadania e desenvolvimento. Já oferecemos as autoridades, inclusive ao comando da polícia e das FDS, que estaríamos a disposição para orientarmos em termos de ética e cidadania as FDS e polícia."