Livros dos PALOP entre os menos lidos em português na China
22 de fevereiro de 2021Zerbo Freire, 22 anos, natural de Cabo Verde, reuniu cerca de 50 poemas em crioulo que escreveu para fazer rap. Depois, passou-os para português e assim nasceu 'Visão, Direcção, Acção', uma obra autobiográfica que explora o percurso de um jovem africano em confronto com o mundo.
Zerbo Freire é o pseudónimo de Rivaldo Freire Tavares. O nome e a base de trabalho vão buscar inspiração a Joseph Ki-Zerbo, antigo político e pensador do Burkina Faso, autor da obra "Para quando a África?".
"[Os meus] temas são a própria consciência do povo cabo-verdiano, o meu próprio 'eu' e as circunstâncias que me limitam. As circunstâncias do meu bairro, as minhas poesias estão lá e retratam de uma certa forma o bairro, as circunstâncias que limitaram e que ainda limitam muitas pessoas", começa por explicar à DW África. "Tenho poesias que também caracterizam um pouco a situação atual do continente", acrescenta o poeta cabo-verdiano.
Bons autores, mas pouco conhecidos
Zerbo Freire cresceu no bairro Lém Cachorro, na Cidade da Praia, mas vive em Macau, onde frequenta o último ano da licenciatura de Língua e Cultura Chinesas.
Em 2017, o jovem cabo-verdiano recebeu uma bolsa de estudos do Instituto Politécnico de Macau para prosseguir os estudos universitários no pequeno território chinês. Como parte deste intercâmbio passou um ano na capital chinesa, em Pequim, onde se aproximou da poesia clássica chinesa, sobretudo dos autores da dinastia Tang: Li Bai, Du Fu, Wang Wei, He Zhijiang.
Zerbo admite que "seria um sonho" ver este primeiro livro de poesia traduzido para chinês. Cabo Verde, refere o jovem, tem bons autores que não são conhecidos neste lado do mundo.
"Quando você fala em Cabo Verde, os chineses perguntam, Cabo Verde é onde? É nessa lógica que a gente tem de trazer mais de nós: mais escrituras, mais livros para serem traduzidos para chinês, para dar a conhecer mais, porque você vem aqui e não quer só tomar e ir embora. É por isso é que é o intercâmbio", defende.
Comparando com obras do Ocidente, são ainda raros os títulos africanos que se podem encontrar nas livrarias chinesas. A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é das poucas autoras com quase todo o corpo de trabalho traduzido no país.
Numa lista informal, compilada pelo tradutor norte-americano Bruce Humes, que viveu e trabalhou na China entre 1994 e 2013, foram identificados 101 escritores africanos responsáveis por 238 trabalhos traduzidos para a língua chinesa. De acordo com o também crítico literário, o número representa um aumento de 63% face ao início do ano de 2018 (146 obras).
Entre os autores que escrevem em português, encontram-se nomes como Agostinho Neto, Luandino Vieira, Manuel Rui, Óscar Ribas e Jacinto de Lemos. Mas é o moçambicano Mia Couto e o angolano José Eduardo Agualusa que têm encontrado mais eco entre o público chinês.
"Penso que a China introduz mais de dez mil livros de literatura estrangeira a cada ano. Só por volta de 20 ou 30 obras são originalmente escritas em língua portuguesa, incluindo Portugal, Brasil e África. Nós últimos cinco anos, pelo que sei, só foram traduzidas uma dezena ou no máximo 15 obras de autores africanos", comenta Wang Yuan, tradutor de Agualusa na China, e docente do Departamento de Português e Espanhol da Escola de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim.
Maior destaque no passado
Houve tempos em que a literatura africana de língua portuguesa teve lugar de honra nas prateleiras chinesas. Wang Yuan recua aos anos 60 e 70, quando os movimentos de libertação ganharam força em África. Nessa altura, surgiram nomes como Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade, primeiro presidente do MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola.
"Países como Angola ou Moçambique, nos últimos 50 anos, tiveram uma experiência histórica bastante semelhante à da China, eu creio. Não só a fase da Guerra Colonial, a independência, mas também a fase da tentativa socialista e depois também a desilusão com a revolução e a fase da guerra civil", recorda o tradutor.
Hoje, o público identifica-se com outros temas, considera Wang Yuan, que também converteu para chinês outros autores de língua portuguesa, como o brasileiro Jorge Amado e os portugueses António Lobo Antunes e José Saramago.
Neste contexto de pandemia, títulos de Agualusa "que tratam de um sentimento de isolamento", como 'Teoria Geral do Esquecimento' (2012) ou 'Os Vivos e os outros' (2020), podem chamar mais a atenção dos leitores chineses. O livro 'Teoria Geral do Esquecimento', publicado na China em abril do ano passado, teve uma tiragem de 10 mil exemplares, na primeira edição, e o lançamento da versão chinesa de 'Os outros e os Vivos' deverá acontecer ainda este ano.
"Os romances de Mia Couto e Agualusa foram bem recebidos, mas outros autores não tanto. Isso deve-se a muitos factores, como a qualidade da tradução", explica o tradutor.
Wang Yuan nota que há ainda um desconhecimento por parte dos editores no país sobre os autores africanos. O interesse surge sobretudo quando estes ganham prémios internacionais. O académico defende, por isso, que cabe aos tradutores e às editoras "mudar a situação" e promover junto do grande público outros nomes africanos "que merecem a atenção dos chineses".
Pepetela, Ondjaki (ambos de Angola), Paulina Chiziane ou Lília Momplé (Moçambique) são alguns exemplos referidos pelo tradutor.