"Havia uma juventude a florescer que foi dizimada em Angola"
27 de maio de 2019O tempo é determinante para uma verdadeira reconciliação entre o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e as famílias das milhares de vítimas dos acontecimentos que se seguiram à alegada tentativa de golpe de Estado ocorrida em 27 de maio de 1977.
O escritor angolano, Lopito Feijó, diz em entrevista à DW África que, apesar de ter sido necessária uma reação, houve excessos por parte do partido no poder.
O então militante da Juventude do Movimento de Libertação de Angola (JMPLA) diz que "este é um problema que marcou quase todas as famílias angolanas" e que é preciso com tempo resolvê-lo de forma gradual e pacífica, incluindo a emissão de certidões de óbito das vítimas do 27 de maio de 1977.
No dia 27 de maio de 1977, Lopito Feijó, era um jovem adolescente de 14 anos, estudante no Liceu Paulo Dias Novais, que vivia na Quinta Avenida do Cazenga. Naquele dia, saiu de casa para ir à escola, justamente ao lado da Rádio Nacional de Angola, que já tinha sido tomada logo pela manhã.
"Muita movimentação de tanques e não me tinha apercebido mesmo. Estava totalmente inocente. Quando chegamos ao liceu, não havia aulas. Estando no liceu, fomos mobilizados para ir até à Rádio Nacional".Acabaram por não chegar ao destino. Conta que "havia uma saraivada de tiros” e "gente a fugir de um lado para outro".
"Quer dizer que eram as tropas cubanas que estavam a tentar recuperar a Rádio Nacional".
E "havia mortos”, segundo Lopito Feijó. Os alunos acabaram por regressar a casa, num trajeto "muito mais agitado".
Porque, maioritamente, as pessoas não sabiam o que é que estava a acontecer. Só depois – já depois das 13 horas, depois de retomada a Rádio [Nacional], é que nós nos inteiramos que estava a acontecer aquilo que algumas pessoas consideram e outras negam ter sido uma tentativa de golpe de Estado.
Antes, lembra, "já havia indícios de que as coisas politicamente não estavam bem". No dia 21 de maio, era uma sexta-feira, houve um comício no estádio da Cidadela, em Luanda, em que foram expulsos do Comité Central do MPLA o Nito Alves e José Van Dunem. Discursara o então Presidente da República, Agostinho Neto. Também já havia uma comissão de inquérito, coordenada por José Eduardo dos Santos – na altura ministro do Plano –, para averiguar se existia fracionismo no seio do partido no poder.
Onda de repressão e assassinatos
Aos acontecimentos do 27 de maio daquele ano seguiram-se muitos outros episódios, numa onda de repressão e assassinatos dos opositores de Agostinho Neto. "Era vulgar, qualquer tentativa de golpe de Estado, fazer rolar cabeças. Era uma prática dos anos 60 e 70 em África e não só. A tentativa se falhasse, os mentores do golpe ou da tentativa eram totalmente dizimados. Era uma prática. Não havia humanismo nenhum. Era para a defesa dos interesses do poder.
Era o tempo da guerra fria. "E nesse tempo "ou és meu amigo, ou és meu inimigo”. "Ou estás comigo, ou estás contra mim”, recorda, lamentando o fato dos africanos terem perdido o senso da humanidade, da fraternidade e da solidariedade e do suposto familiarismo entre as comunidades. No entanto, também faz lembrar que "quando estas tentativas de golpe de Estado pegassem, se se efetivassem", os líderes derrubados acabavam a ser, igualmente, fuzilados.
"E o destino não era o melhor para todos aqueles que estivessem ligados ao poder vigente".
No caso de Angola, Lopito Feijó assume que "tinha que haver uma reação”. Mas admite que, que houve excesso. "Havia uma juventude a florescer e é essa juventude que foi dizimada. Uns falam em 80 mil, outros falam em 30 mil, outros ainda falam em 20 mil [mortos], mas a verdade é que jamais poderemos quantificar as vítimas do 27 de maio de uma parte ou de outra”.
O tempo é o juiz
Passados 42 anos do 27 de maio, o que é preciso fazer para apaziguar a sociedade ou fazer a reconciliação entre os angolanos? Lopito Feijó diz que o tempo é um grande juiz. "Penso que o 27 de maio é um problema interno do MPLA, cujas raízes inclusive já vêm desde o tempo dos "maquis". Atravessou a fase de independência e depois foi uma tentativa de resolver problemas adiados".
Sendo um problema do MPLA e sendo o MPLA o único movimento que governou e governa Angola até hoje, o partido deve assumir tudo de bom e de mau que aconteceu na sociedade angolana ao longo destes anos. Por isso é que Lopito Feijó havia afirmado, numa entrevista à RTP, que o MPLA ainda não se reconciliou consigo próprio.
Agora há uma tentativa de se resolver paulatina e progressivamente este [problema] do 27 de maio e outros. Dá o exemplo da Comissão da Verdade na África do Sul para justificar que as feridas não ficarão saradas de um dia para o outro. Hoje, os ânimos estão mais acalmados, reconhece Feijó, referindo que a sociedade angolana está mais preparada para lidar com os factos ocorridos depois daquele fatídico dia.
"Hoje, estamos mais preparados para ouvir. Também temos que reconhecer que ao longo desses 42 anos, houve famílias que sofreram e que sofrem até agora, quanto mais não seja pela falta de um documento fundamental na vida das famílias, que é uma certidão de óbito de um ente querido. Então, vamos tratar de resolver isto paulatina e progressivamente”.
Lopito Feijó elogia a decisão do Presidente da República, João Lourenço, de criar uma comissão para tratar destas matérias, admitindo que na maior parte deste processo do "27 de maio” houve injustamente vítimas, consideradas inocentes.
Na reta final da entrevista à DW África o escritor lança um apelo: Angola deve resolver os seus problemas aos olhos do mundo para que eles não voltem a acontecer e afetar a vida social e cultural dos angolanos.