Mais passado que futuro
16 de julho de 2014
Rica em recursos minerais, como ouro e platina, a África do Sul foi desde sempre vista como terra de oportunidades. Milhares de moçambicanos, principalmente do sul do país, partiam, desde o século XIX, para trabalhar nas minas sul-africanas com o sonho de uma vida melhor.
Também Fany Mpfumo, considerado por muitos o rei da marrabenta, foi trabalhar para as minas no final da década de 1940 e, tal como alguns outros mineiros, acabaria por se dedicar para sempre à música.
Aliás, “alguns dos primeiros músicos moçambicanos que tiveram a oportunidade de gravar tiveram-na na África do Sul a partir da década de 1950” e muitos desses músicos “foram para a África do Sul como mineiros e já estando lá estabelecidos entraram no mercado musical”, explica o antropólogo moçambicano Marílio Wane.
Contudo, os mineiros que se tornaram músicos contam-se pelos dedos das mãos: Fany Mpfumo, Francisco Mahecuane e o mestre de timbila Venâncio Mbande foram alguns deles. A maioria dedicou-se exclusivamente ao duro trabalho no subsolo, explorando ouro e platina nas grandes empresas de mineração.
Ir às minas para poder casar
A vaga migratória, que remonta ao século XIX, intensificou-se depois da assinatura de um acordo para facilitar o trabalho de moçambicanos na África do Sul, em 1964, entre os Estados sul-africano e português, antigo poder da ex-colónia de Moçambique.
Muitos moçambicanos partiam principalmente das zonas rurais das províncias no sul de Moçambique, Maputo, Gaza e Inhambane. Era vulgar a ideia de que para casar muitos homens tinham primeiro de ir às minas.
“Ao longo de todo o século XX era uma honra para uma família ter um filho que ia trabalhar nas minas da África do Sul. Aliás, em muitas zonas rurais do sul de Moçambique, um homem ir trabalhar nas minas era uma espécie de segundo rito de iniciação, ou seja, a pessoa tornava-se digna de constituir uma família, de ser um homem mesmo, quando fazia essa viagem para a África do Sul para trabalhar nas minas, levando em consideração todos os riscos que isso afetava”, lembra o antropólogo Marílio Wane.
A histórica migração de mineiros moçambicanos para a África do Sul teve “um efeito de ampliação do universo cultural das populações. E fora outros costumes urbanos como a forma de se vestir, a questão do trabalho assalariado, a relação com o trabalho e mesmo notícias sobre outras partes do mundo eram mais acessíveis no universo urbano da África do Sul associado às minas”, aponta o antropólogo. E a própria relação “com os bens de consumo a que tinham acesso, por exemplo, as pessoas traziam muitos rádios de lá, então passaram a ouvir muita música gravada” em Moçambique, acrescenta Marílio Wane.
Mudam-se os tempos...
Nos tempos áureos, na década de 1970 e portanto durante o regime de segregação racial do “apartheid”, a indústria mineira sul-africana chegou a empregar cerca de 120 mil trabalhadores moçambicanos, num universo de um milhão de mineiros. Ou seja, quase um em cada oito mineiros era moçambicano.
Hoje o cenário é diferente: são cerca de 43 mil moçambicanos entre 500 mil mineiros. Portanto, apenas um em cada doze mineiros é moçambicano.
E a tendência é para continuar a diminuir, não por falta de interesse, mas porque “a própria República da África do Sul tem apertado um pouco as suas políticas protecionistas para o emprego do seu cidadão e isto tem, de facto, impondo certas restrições no recrutamento de mão-de-obra estrangeira, não só dos trabalhadores moçambicanos, mas dos trabalhadores de outras nacionalidades como do Lesoto, Botswana e Suazilândia”, explica Adelino Espanha Muchenga, delegado do Ministério do Trabalho de Moçambique em Joanesburgo, na África do Sul.
Mas além disso, o sector de mineração atravessa várias dificuldades, como a redução das matérias-primas e a instabilidade causada pelas constantes greves no sector.
“Onde é visível esse impacto e de forma significativa é ao nível do emprego e do rendimento das famílias das zonas tradicionalmente exportadoras de mão-de-obra, Chibuto, Chokwé, Manjacaze e Guijá”, no entanto, “no dia-a-dia da vida de Moçambique, o impacto é quase invisível, é marginal”, avalia o economista moçambicano Luís Magaço.
Um sector em constante instabilidade
A mais longa greve da história da África do Sul paralisou, no primeiro semestre deste ano, o sector da platina durante cinco meses.
Os trabalhadores regressaram aos trabalhos no final de junho, depois de alcançado um acordo com as empresas que prevê que os salários dos mineiros com vencimentos mais baixos sejam aumentados em mil rands mensais (o equivalente a 69 euros) todos os anos até 2017.
Durante a paralisação de cinco meses, os mineiros ficaram sem receber e “em vez de o mineiro enviar comida para Moçambique, a família é que estava a mandar comida para ele cá ter o que comer”, descreve Manuel Matola, coordenador dos Trabalhadores Moçambicanos na Província sul-africana de Noroeste.
Os trabalhadores estrangeiros nas minas não costumam estar na linha da frente das greves, lideradas sobretudo pelos mineiros e sindicatos sul-africanos.
As minas de ouro escaparam à paralisação este ano. Mas em 2012, o sector foi também afetado pela onda de greves violentas que gerou mais de 40 mortos na região de Marikana.
Nessa altura, o mineiro Baptista Luís Falaque estava de férias junto da família em Maputo. Mas concorda com as reivindicações salariais pois recebe “um dos salários mais pobres”, sendo difícil “criar uma maneira de como a família a não passar um dia sem comer”.
Há 22 anos a trabalhar nas minas, Baptista Luís Falaque lamenta que o ordenado continue a ser magro para ajudar os 15 familiares que dependem de si.
A contestação salarial nas minas de ouro poderá voltar a soar no próximo ano, uma vez que termina o acordo de três anos, assinado em 2012, entre as empresas do sector e os sindicatos.
Uma profissão de riscos no subsolo e à superfície
A atividade mineira é um trabalho fisicamente duro que acarreta riscos para a saúde. Tuberculose, devido às poeiras, e o HIV/SIDA são as doenças que mais afetam e preocupam na comunidade mineira.
O economista moçambicano Luís Magaço sublinha que a disseminação do vírus HIV em Moçambique atingiu um pico preocupante nas décadas de 1990 e 2000. Um dos fatores que mais contribuiu para a propagação do vírus no país foi a mobilidade de trabalhadores como mineiros e camionistas.
“Os mineiros vão e estão sozinhos, as famílias estão cá. E eles acabaram por ter relações com mulheres infectadas (a África do Sul tem a taxa mais alta de infecção do HIV/SIDA)”, pelo que muitos trabalhadores acabaram também por ficar infectados e por transmitir o vírus à família em Moçambique, esclarece Luís Magaço.
“Houve anos em que havia um crescimento populacional negativo pelo falecimento primeiro dos chefes de família, depois das esposas e filhos infectados”, o que foi particularmente “visível das regiões de Chokwé, Chibuto e Manjacaze, onde há um elevadíssimo número de órfãos de pai e mãe”, sublinha o economista.
Por isso, as empresas do sector de mineração apostam na prevenção e aconselhamento aos trabalhadores. E é nesse departamento de uma empresa de exploração de ouro, em Carletonville, cerca de 80 km a oeste de Joanesburgo, que trabalha Arnaldo Joaquim Cossa, onde tem visto uma redução dos casos de HIV/SIDA.
Quando, há cinco anos atrás, “começámos o nosso programa, sempre que as pessoas vinham fazer testes, tínhamos cerca de 200 pessoas [infectadas com o vírus HIV] por mês. Então, acho que, desde que começámos o nosso programa, esse número desceu e hoje é de cerca de 100 pessoas por mês”.
Antes de integrar, nos últimos cinco anos, a equipa de aconselhamento aos trabalhadores sobre gestão de dinheiro, prevenção e tratamento de doenças, Arnaldo Joaquim Cossa deixou, há 25 anos, Manjacaze, na província de Gaza para trabalhar lá em baixo - como vulgarmente se referem os mineiros ao subsolo.
Casas de chapa e insegurança
Para receberem um subsídio de alojamento (entre os 1.500 e os 2.000 rands, o que corresponde a um máximo de 140 euros), muitos trabalhadores optam por morar fora dos hostels, as habitações das companhias onde os mineiros vivem em comunidade.
Montam as suas casas de chapa nas bermas da estrada, nas imediações das empresas, sobrevivendo em condições ingratas: sem água nem eletricidade e sujeitos aos assaltos e à violência de grupos perigosos, muitas vezes armados, que fazem a exploração ilegal do ouro.
Além disso, são frequentes ainda as queixas da alimentação fornecida pelas empresas: “a comida que nós comemos está mal preparada”. “Dada a forma como estamos a trabalhar, teríamos direito a ter boa comida”, critica César Francisco Mussa que, há mais de 25 anos, trabalha nas minas.
“Mamparra magaíça”
A lista de reclamações não se fica por aqui. Lá em baixo os mineiros dizem que são todos iguais mas à superfície não é bem assim, nem mesmo em Moçambique.
“O mineiro moçambicano é alvo quase de tudo”, na África do Sul as pessoas dizem que “a gente que vem arrancar os postos de trabalho deles (dos sul-africanos)", queixa-se José Joaquim Munguambe, que há 20 anos partiu da província de Maputo em nome de um futuro melhor para a sua família. "Eles dizem abertamente que há falta de emprego, que há muitos estrangeiros a empregar-se aqui e eles que são os donos da terra não conseguem emprego, vivem numa situação de pobreza absoluta”, afirma Munguambe.
Além disso, o mineiro conta que quando vai a Moçambique, “a partir da fronteira até chegar a casa, quando alguém sabe que você trabalha na África do Sul, você não é nada e isso leva a partir corações”.
Mas para o sociólogo Marílio Wane, a troça é coisa do passado, pois foram principalmente os primeiros mineiros moçambicanos na África do Sul alvo de maior chacota no próprio país.
“Muitos trabalhadores que iam para as minas da África do Sul ganhavam um dinheiro que, na altura, era inacessível em Moçambique. Mas quando voltavam, pela euforia e até como forma de demonstrar que tinham posses, eles muitas vezes acabavam por ser enganados, seja por prostitutas ou negociantes desonestos”, pelo que surgiu a expressão “mamparra magaíça, que quer dizer uma pessoa burra, idiota que juntou muito dinheiro à custa de muito trabalho e sacrifício mas quando chegava aqui perdia esse dinheiro todo de forma muito rápida e fácil”, esclarece Marílio Wane.
Mineiros moçambicanos com futuro no próprio país?
Muitos trabalhadores moçambicanos queixam-se também de serem prejudicados no câmbio efetuado no pagamento de salários. Em termos práticos, parte do pagamento é feita ao Estado moçambicano em rands que, através de uma agência, em Maputo, paga aos trabalhadores ou à família em meticais.
O câmbio é efetuado a uma taxa fixa, muitas vezes mais baixa do que a taxa de câmbio no mercado livre. Assim, os mineiros acabam por perder uma parte do seu salário.
O Ministério do Trabalho em Moçambique está a tentar resolver o problema com a abertura de contas bancárias individuais. Assim, no futuro, a transferência do salário poderá ser feita diretamente para a conta dos trabalhadores à taxa de câmbio do dia.
Apesar da emigração mineira ter um impacto cada vez mais residual na economia, a verdade é que, conclui o sociólogo Marílio Wane, este fenómeno histórico moldou a sociedade e a cultura moçambicana.
Entretanto, abranda o ritmo da emigração de mineiros para a África do Sul. Contudo, para a economia do país, futuro deverá passar, acredita o economista Luís Magaço, pelo aproveitamento da força de trabalho experiente para as minas de carvão da província central de Tete. Pois, o carvão é atualmente o principal produto de exportação em Moçambique.