Mia Couto e a escrita como modo de vida
23 de setembro de 2011
DW: Publica com muita frequência. Para si o que significa escrever?
Mia Couto: Para mim é quase um modo de viver. Não me concebo a mim próprio, existindo, se não for por via dessa escrita. Desde menino que percebi que era tímido, e como tinha uma relação difícil com as coisas práticas refugiei-me no universo do sonho e da palavra e dos livros e de facto acabou por ser uma coisa que não resultou de uma capacidade, mas de uma certa incapacidade, inabilidade que eu tinha para ser como os outros meninos que encontravam motivo de grande alegria na rua.
DW: Quando liguei para si disse-me que escreve geralmente depois da 16 horas. Faz isso todos os dias?
MC: Eu escrevo todos os dias, pode não ser exatamente a essa hora. Essa é a hora em normalmente saio do serviço, porque eu trabalho, tenho outra ocupação, normalmente sobram duas ou três horas. Se não escrevo a essa hora, escrevo à noite forçosamente, é uma disciplina que impus a mim próprio. Nem que seja para rescrever, porque há momentos em que não há inspiração, então eu rescrevo o que já fiz.
DW: Tem sempre assuntos e coisas para escrever? Os temas não esgotam?
MC: Quando estou a fabricar um livro acontece quase o contrário, eu deixo entrar tantos personagens, aquilo é uma espécie de caos e eu até tenho de me conter do ponto de vista de fechar portas a imaginação. Claro que quando acabo um livro fico num período que até penso "agora acabou, não vou mais escrever, entrei no deserto", mas basta a vida tomar posse de mim e entregar-me ao convívio com outras pessoas que renasce sempre, e até agora renasceu sempre.
DW: Muitos consideram a sua escrita como criativa. Onde busca essa criatividade?´
MC: É difícil ser eu próprio a explicar, porque isso não se explica. Mas uma das razões é o facto de eu vir da poesia. Eu trabalho na prosa, mas vim da poesia, e eu acho que continuo a considerar-me um poeta, um poeta conta história. Por outro lado, do ponto de vista da linguagem eu vivo num país que tem outras línguas, a língua portuguesa em Moçambique é apenas a língua oficial, também é a língua de cultura para muita gente.
Há aqui um caldeirão de misturas, muita gente fala Português vindo de outra língua e isso implica uma recriação social, não literária. O Português está a ser sujeito a este processo e para quem quer é um momento muito bonito, é um privilégio muito grande conviver com um momento histórico em que a língua portuguesa ainda está na língua de todos.
DW: Quais são os seus escritores prediletos?
MC: São muitos, é difícil dizer, eu como disse, venho da poesia, muitos deles vem da poesia e muitos deles são de língua portuguesa também, tenho no Brasil uma grande escola, os meus grandes mestres mostram lá.
Tive muitas marcas de outros como, por exemplo, eu trabalho muito o conto e fui marcado por Chekhov aquilo que a capacidade de não dar confiança a realidade, nós olhamos para a realidade como uma coisa que foi inventada, vem muito dos latino-americanos como Garcia Marquez, como Juan Rulfo. Então, eu sou o resultado de uma mistura grande.
DW: Que trabalho seu o marcou mais?
MC: Talvez o "Terra Sonâmbula" que foi feito durante a guerra, feito numa situação difícil porque a guerra estava presente, havias colegas meus de profissão, eu era jornalista nessa altura, que morriam e eu acreditava que nessa altura não era capaz de fazer um livro sobre a guerra, era preciso vir a paz. Mas aconteceu ao contrário, o livro começou a visitar-me e comecei a ser inspirado mesmo antes do fim da guerra. Foi o único livro realmente que me custou a fazer, foi uma espécie de filho rebelde que tive.
DW: Qual é o tema mais difícil de escrever?
MC: Curiosamente o que me é difícil escrever é quando há uma cena de amor, um namoro, porque há uma grande facilidade em que isso se torne uma coisa brejeira. Entre ficar do lado bem comportado e o lado mal comportado ainda não sei como conduzir a escrita por essa via. Sempre que há uma cena em que um homem e uma mulher estão numa situação mais íntima, eu tenho grande dificuldade em escrever isso.
DW: Se voltasse a nascer agora o que o Mia mudaria na sua vida?
MC: Eu vou fugir a resposta, porque eu acho que nasço várias vezes e nasço ainda hoje. É uma das razões que me faz nascer é viver a vida dos meus personagens e tenho uma grande capacidade empatia com as pessoas. Eu desloco-me de mim mesmo para os outros com grande facilidade. Faço isso com grande prazer.
Sinto que nasço várias vezes, eu mudo muito e não era preciso nascer para mudar coisas. Mas se tivesse que nascer de novo eu não iria mudar nada por que a minha infância foi tão rica, tão mágica. Ela continua a ser uma espécie de caixa de tesouro onde vou buscar aquilo de que preciso.
DW: Reconhece alguma maturidade ao longo desses anos?
MC: Sim, nos primeiros livros eu queria mostrar tudo, queria fazer bonito. De qualquer maneira acho que tenho agora mais capacidade de contenção, acho que a maturidade é isso, eu sei-me conter mais. Posso saber que determinada coisa não é para agora, e na altura colocava tudo no livro. Esta capacidade de olhar criticamente o que estou a fazer no momento, que é um momento muito apaixonado e faço aquilo como se estivesse a fazer amor, é uma grande paixão escrever. E essa distância consigo fazê-la agora.
DW: Qual o seu parecer sobre a divulgação da literatura moçambicana?
MC: Acho que houve um momento em que ficamos prisioneiros de um grupo pequeno de autores, mas agora acho que a situação já está a mudar, estão a surgir nomes novos. Foi na literatura que mais sofremos o impacto da guerra.
Os nomes que são publicados regularmente são traduzidos e publicados no exterior são meia dúzia e isso é um risco, podemos adoecer, se pensarmos que isso é assim mesmo. Há uma possibilidade de sacudir esta situação e há novos nomes que vêm aí.
DW: os seus livros têm sido adaptados para filmes, para peças de teatro. Como é que se sente?
MC: Eu quase não vejo. Não no sentido negativo. Mas quando isso acontece eu procuro afastar-me. Porque essa outra obra tem que ter autonomia, tem que ter um outro registo, uma outra lógica. Se eu estiver presente, eu vou querer que aquilo seja o livro, prolongado e atirado para um outro contexto.
Acho que a minha sabedoria é afastar-me, e quando o produtor de teatro ou o cineasta me pede para eu estar presente, para eu dar algum apoio, eu faço-o. Mas faço como um escravo, como alguém que está ao serviço desse outro criador. O meu momento de criação já foi: foi o livro. Quando estou a ver um filme ou uma peça de teatro feita de um livro meu não vou com expectativa de reencontrar coisa nenhuma. Quero inclusivamente que seja uma coisa de um outro.
Autora: Nádia Issufo
Edição: Cristina Krippahl