"Nem no tempo da guerra se destruíam redações com bomba"
2 de setembro de 2020Em Moçambique, o editor-executivo do semanário Canal de Moçambique foi interrogado esta quarta-feira (02.09), no âmbito de um processo em que é arguido por alegada violação de segredo de Estado.
Em entrevista à DW África, Matias Guente avança que foi notificado para um interrogatório relacionado com os textos que o semanário escreveu sobre um contrato entre o Governo moçambicano e a então multinacional norte-americana Anadarko, atualmente Total, para a segurança dos projetos de gás natural na província de Cabo Delgado, norte de Moçambique.
Os textos foram publicados em março deste ano e o contrato entre o Governo e a Anadarko foi assinado em fevereiro de 2019.
Na entrevista, o jornalista descreve que o promotor que o interrogou deixou claro a intenção de levar o processo ao tribunal. Guente volta a defender que um jornalista “não está obrigado ao segredo de Estado” e revela pressões anteriores às quais foi submetido e que, do seu ponto de vista, teriam culminado no atual processo.
DW África: O que motivou este processo em que é arguido por alegada violação de segredo de Estado?
Matias Guente (MG): Compareci perante o procurador de Maputo porque fui notificado, enquanto arguido, no processo que foi aberto pela própria procuradoria [da cidade de Maputo] contra mim, na qualidade de editor-executivo do Canal de Moçambique, e que tem a ver com a publicação que o Canal de Moçambique fez de um contrato altamente suspeito, com indícios até de ilegalidade, firmado entre as multinacionais Anadarko, agora Total, e a Eni, agora MRV [Mozambique Rovuma Venture], em missão do Exército para a prestação de serviços privados.
Abriu-se uma conta num banco comercial em que um dos assinantes é o próprio ministro. Quer dizer, isso nunca aconteceu antes. A lei diz que, para este tipo de contrato, o recebimento tem que ser na conta única de pessoas. Mas, esse ia para uma conta privada assinada diretamente pelo ministro.
Todas essas questões fizeram com que o Canal de Moçambique publicasse uma reportagem e que provasse com esses documentos todos.
Mas o Ministério da Defesa apresentou uma queixa contra nós e a Procuradoria promoveu essa queixa e abriu o processo em que constituiu a mim arguido.
DW África: E agora o que vai acontecer, vai haver um processo promovido por um tribunal que vai transitar em julgamento propriamente dito?
MG: Creio que sim. Porque, pelas perguntas que me foram feitas, dá a entender que há intenção da parte da Procuradoria de promover essa queixa para o tribunal para julgamento. E as perguntas são muito ridículas. Questões como, por exemplo, se eu tinha certeza de que quem abriu a conta foi o ministro, se eu tinha certeza que aquela conta recebia dinheiro. Ou seja, saímos completamente do foco da questão que estávamos a tratar, que é uma questão muito séria, para a pessoalização da matéria - exatamente para encontrar o caminho pelo qual podem levar [o processo] ao tribunal e o procurador deixou claro que vai haver um processo.
DW África: Subentende-se, pelas suas palavras, que é de opinião de que este processo é motivado por razões políticas?
MG: Absolutamente. Não tenho a mínima dúvida e, depois da audição de hoje, tive claro que se trata mesmo de um processo político e não necessariamente jurídico.
DW África: E quanto à destruição completa da redação do Canal de Moçambique, acha também que este ataque foi motivado por razões políticas?
MG: Para mim, está tudo relacionado. Não está só relacionado com o ataque ao Canal, mas é um pacote completo de um conjunto de pessoas que têm feito essas queixas contra o Canal. Começou assim com coincidências. Por exemplo, no dia 31, quando o editor do Canal de Moçambique, eu próprio, sofri uma tentativa de rapto que não se efetivou e um conjunto de ataques nas redes sociais por pessoas devidamente identificadas e relacionadas com o poder. Depois, uma pilha de processos judiciais - incluindo este que é o mais ridículo, de violação de alegados segredos de Estado. E agora, o incêndio ao Canal de Moçambique. Portanto, para nós, não temos a mínima dúvida de que tudo isso está relacionado.
DW África: Portanto, o ar para jornalistas críticos e independentes em Moçambique está a tornar-se irrespirável?
MG: Sem dúvida nenhuma, sem dúvida nenhuma. Olha nem no tempo da guerra [civil de 16 anos], nunca se destruíam redações com bomba, nunca se regou com combustível as redações, a incendiar redações. Tal como nunca aos jornalistas foi lhes dado o segredo de Estado à sua guarda. Porque, a princípio, um jornalista não está obrigado ao segredo de Estado. O jornalista publica todas as matérias que são de interesse público. Todo esse ambiente está a tornar-se absolutamente infernal para o exercício de imprensa de forma livre e independente.
DW África: Matias Guente, sente-se devidamente apoiado e protegido por organizações nacionais moçambicanas e internacionais?
MG: Recebi o apoio de cidadãos comuns. Não tenho um apoio formal institucional de proteção ou qualquer coisa [do tipo]. Não falo necessariamente de Matias Guente, mas dos colaboradores do Canal, que têm estado sob esse tipo de pressão, que têm que mudar as suas rotas normais, têm de garantir que as suas famílias estejam em segurança, num ambiente que ficou muito pesado para os nossos jornalistas.
Mas, estamos aqui e não temos outro país. Este é o meu país, não temos outros passaportes. Nós acreditamos em Moçambique, acreditamos que o bom senso vai prevalecer.
Recorde-se que a redação do semanário Canal de Moçambique ficou completamente destruída, há 10 dias, num incêndio que a direção do jornal atribui a fogo posto e que já mereceu uma forte onda de repúdio nacional e internacional.
Segundo a direção do jornal, desconhecidos atearam fogo à redação, tendo sido encontrados bidões no interior das instalações, um dos quais ainda com um pouco de combustível.
Os autores do incêndio terão introduzido os bidões de combustível no interior das instalações do jornal, depois de arrombarem a porta frontal do espaço.