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Moçambicanas vítimas da guerra civil vivem dor silenciada

Júlia Faria
14 de março de 2019

Um relatório dos Advogados Sem Fronteira do Canadá denuncia os abusos sofridos por mulheres moçambicanas durante o conflito armado que durou 16 anos. Segundo levantamento, vítimas recebem pouco amparo das autoridades.

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Bürgerkrieg in Mosambik 1987
Foto de arquivo: Conflito armado em Moçambique (1987)Foto: picture-alliance/Paul O'Driscoll/Impact Photos

Uma dor silenciada. Assim pode ser descrito o sentimento predominante entre as mulheres moçambicanas vitimadas pela guerra civil no país entre 1976 e 1992. A lista de violações cometidas contra elas é grande. Foram agredidas, torturadas, abusadas e escravizadas sexualmente, perderam maridos e filhos. Não bastasse as dores do período de conflito, essas mulheres lidam hoje com outro tipo de violência: ter de ficar em silêncio sobre o que lhes aconteceu.

Essa é uma das conclusões de um relatório dos Advogados Sem Fronteiras Canadá, que ouviu 245 vítimas diretas e indiretas do conflito nas províncias de Nampula, Zambézia, Sofala e Gaza. Sylvia Dias, representante da organização, relata que as entrevistadas mostraram um grande desejo de contarem suas histórias, pois vivem com a dor do silêncio e da sensação de que os crimes cometidos contra elas nunca foram penalizados.

"Uma das medidas utilizadas por Moçambique para seguir adiante depois do conflito foi uma regra um tanto imposta do silêncio, uma regra do esquecimento. Mas nunca realmente foi dada às vítimas uma oportunidade de buscar algum tipo de reparação e também de contarem o que aconteceu. O silêncio não ajuda a reparar. Muitas vezes, ele inclusive vai no sentido oposto. O que ele faz é esconder feridas do passado. E uma das nossas preocupações com Moçambique é justamente essa de que muito da tensão e do conflito está ali, está latente”, alerta Sylvia Dias.

Moçambicanas vítimas da guerra civil vivem dor silenciada

Violência brutal

O relatório reúne relatos dolorosos de mulheres que ficaram sob a mira de atos brutais de violência.

"Meu marido era militar e nós tínhamos seis filhos. Eles assassinaram meus filhos. Eu vi todos a serem mortos, um por um. Depois obrigaram-nos a fazer sexo, mas não conseguimos. Irritados, pegaram nele, amarraram-lhe na cadeira e dois deles violaram-me a rir e zombar do meu marido... terminaram o que estavam a fazer, incendiaram a casa e levaram-me com eles. Naquele dia eu queria morrer, mas vivi para ver morrer aqueles que mataram os meus filhos”, conta uma das entrevistadas.

A maioria das violações está relacionada à violência sexual.

"Fui violada por seis homens de uma vez, quando acordei nem conseguia andar. Meu marido era secretário do bairro, mas alguém foi queixar que ele tinha contacto com os homens da FRELIMO, outro dia chegaram a casa, fui me esconder debaixo da cama, ele foi capturado e amarrado na cadeira e começaram a interrogá-lo. Começaram a vasculhar a casa a procura de papéis, e encontraram-me ali escondida. Naquele dia desejei morrer. Pegaram-me, torturaram-me, obrigaram-nos a fazer sexo diante deles e depois violaram-me ali. Torturaram e mataram o meu marido na minha frente. Aquilo era uma forma de massacrar as mulheres”, revela outro depoimento.

Kanada Rechtsanwälte ohne Grenzen | Cover des Berichts
Relatório dos Advogados Sem Fronteira do CanadáFoto: Lawyers Without Borders Canada

Ajuda económica

O levantamento feito pela organização Advogados sem Fronteiras Canadá ressalta também que muito pouco foi feito como forma de reparação económica às mulheres vítimas da guerra. Atualmente, muitas vivem em situação de extrema pobreza.

"Quando a guerra terminou, elas já não tinham mais acesso a propriedades que tinham sido suas e não tiveram nenhum tipo de apoio para reaver as suas propriedades. Ficaram totalmente carenciadas de qualquer tipo de apoio económico, de como se desenvolver economicamente depois da guerra", conta a representante dos Advogados Sem Fronteiras Canadá.

Segundo Sylvia Dias, a ajuda económica é justamente um importante ponto do que desejam as entrevistadas como reparação por parte do governo moçambicano.

"Nós também perguntamos quais seriam as demandas que elas teriam e algumas medidas são exatamente essa, de apoio económico para poder subsistir. Também era muito pedido de apoio a seus filhos. Para que seus descendentes tenham direito à educação, tenham direito a um desenvolvimento social pleno", explica.

O conflito de 16 anos em Moçambique

A guerra civil entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) estendeu-se entre os anos de 1976 e 1992, logo após a independencia. Um milhão de pessoas morreu durante esse período. O país ficou paralisado em termos económicos e sociais. Mais de três milhões de moçambicanos tornaram-se refugiados em outros países.

O conflito chegou ao fim com a assinatura, em Roma, Itália, do Acordo Geral de Paz (1992) entre o Governo moçambicano e a RENAMO.

Entre 2012 e 2014, Moçambique voltou a passar por um período de tensão político-militar, que culminou com a assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades Militares, em Maputo.

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