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Migração ilegal acontece "com a conivência" de autoridades

26 de março de 2020

O Estado moçambicano "deve criar condições legais ou institucionais" para garantir a proteção dos direitos humanos, defende analista ouvido pela DW. Na terça-feira, foram encontrados 64 migrantes mortos num contentor.

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Contentor onde a polícia moçambicana encontrou 64 pessoas mortas, na terça-feira (26.03)Foto: DW/A. Zacarias

A polícia moçambicana descobriu na terça-feira (24.03) 64 migrantes ilegais mortos por asfixia num contentor que era transportado por um camião do Malawi para a África do Sul.

As vítimas eram de nacionalidade etíope, mas sobreviveram 14 outros migrantes. O motorista e ajudante de camião, que receberam o dinheiro pelo transporte, foram detidos, e, na quarta-feira, foi feito um enterro coletivo.

Sobre as condições quem que foram transportados os migrantes, a DW entrevistou o especialista em direitos humanos e ex-presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos em Moçambique, Custódio Duma.

Mosambik Migration Dutzende Tote in Lkw-Container entdeckt - ÜBERLEBENDE
Sobreviventes da tragédia em TeteFoto: DW/A. Zacarias

DW África: É possível garantir o respeito pelos direitos humanos  num processo ilícito como a migração ilegal?

Custódio Duma (CD): Penso que é impossível garantir a proteção dos direitos humanos num contexto de migração clandestina. A própria migração clandestina é um ato contra a dignidade da pessoa humana. O que deve acontecer, de facto, é que o Estado deve criar condições legais ou institucionais para que situações como esta não possam acontecer.

A migração clandestina deve ser a todo custo desencorajada, embora saibamos que as pessoas migram clandestinamente por várias razões, fogem de situações dos seus países e vão à procura de melhores condições noutros. Mas é preciso desencorajar, usando mecanismos favoráveis para que os cidadãos possam circular livremente de um Estado para o outro sem muitas restrições, desde que cumpram regras mínimas. Basicamente, num contexto de migração clandestina é impossível o respeito pelos direitos humanos, porque é um ato que em si é um atentado à dignidade da pessoa humana e, a partir daí, muitos outros direitos passam a ser violados.

DW África: Este esquema funciona provavelmente com a conivência de alguns funcionários do Estado. Pela experiência que tem, acha que as instituições públicas e os seus funcionários têm sensibilidade para o tema dos direitos humanos? 

CD: Não há dúvidas que a migração clandestina, sobretudo no nosso país ou em países pobres, acontece com a conivência de atores que, de alguma forma, são importantes nos setores político, económico e até social. Se reparar, a última situação que tivemos cá na província de Tete foi com a conivência de transportadores, atores que estão no setor privado e atuam de certa forma com conivência policial, porque não acredito que, numa marcha de um Estado para o outro, não haja suspeita sobre o tipo de carga que se leva nos contentores dos camiões.

Tendo em conta experiências anteriores, já houve casos em que a polícia de proteção, polícia de migração, agentes de migração, entre outros funcionários públicos, facilitaram a entrada clandestina de cidadãos. Então, sempre há conivência, porque as pessoas de que estamos falar não conhecem bem o país e dependem dos atores que o conhecem bem. Neste caso, os motoristas dos camiões com uma ligação muito forte com os oficiais de migração e polícia de proteção da fronteira. Então, penso que não há dúvidas que aqui há uma conivência com as autoridades. Pode ser difícil de provar, [mas,] no passado, já tivemos casos em que foi possível provar, de facto, que havia conivência.

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DW África: Moçambique é um corredor clássico para a África do Sul, no que concerne à migração ilegal...

CD: No contexto dos direitos humanos, Moçambique é um país que tem muitos desafios. É claro que evoluímos de alguma forma, há uma série de legislação, várias convenções que foram ratificadas, instituições que foram criadas, mas a nossa mentalidade sobre a proteção dos direitos humanos ainda é muito baixa, tanto é que, anualmente, todos os relatórios sobre desenvolvimento humano, como de outras áreas temáticas, mostram que os direitos humanos em Moçambique ainda são um aspeto fundamental, tendo em conta, sobretudo, os direitos civis e políticos. E esta questão da migração faz parte desse leque de direitos humanos, que é a livre circulação de pessoas.

Praticamente, somos todos migrantes, cidadãos do mundo, nós viemos de outros lugares e ocupámos os lugares onde estamos. Então, o ser humano, pelas convenções internacionais dos direitos humanos e princípios, deveria ter a liberdade de circular pelo mundo e instalar-se no lugar onde melhor estivesse. Isso implica legislação protetiva, que facilita e cria condições para receber os que se deslocam, independentemente das razões. Então, por um lado, o nosso país, no contexto dos direitos humanos, ainda é um Estado com desafios. Por outro lado, no contexto da migração, sobretudo tendo em conta que essa situação está muito ligada ao tráfico de pessoas e órgãos humanos e que nos últimos anos tem sido um assunto muito sério e levantado em vários fóruns, posso dizer que ainda somos um país com uma situação de direitos humanos de muita emergência.

DW África: Que medidas podem ser melhoradas ou criadas para evitar catástrofes como a dos migrantes em Tete?

CD: Em termos de medidas para mitigar, penso que três passos são fundamentais: primeiro a necessidade de reforçar o policiamento ao nível das fronteiras, em grande escala nalguns sítios e em pequena escala noutros. Temos situações que acontecem até aqui no principal aeroporto em Maputo, em que são encontrados migrantes ilegais no maior aeroporto internacional. Então, é preciso reforçar a segurança e a capacidade de monitorar e perceber quem está numa situação clandestina ou não. Mas isso não é tudo.

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O mais importante é que haja também uma legislação reforçada. Nós aderimos às convenções das Nações Unidas e protocolos a nível da SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral] sobre a migração. É preciso reforçar isso, e temos cá em Moçambique a agência da ONU para os refugiados, com ligação muitas vezes aos imigrantes. Então, era preciso reforçar também a legislação interna, que seja mais favorável, mais permissiva, com clareza sobre os direitos dos imigrantes, refugiados e dos que estão de passagem no território nacional. Penso que estas medidas, por um lado de segurança, estão a faltar em parte - [e] as instituições que são ligadas a esse tipo de monitoria para a implementação de legislação precisam de ser reforçadas e capacitadas. Terceiro, [é necessário] instituições que possam facilitar, ligadas à migração, tendo em conta que a migração clandestina está muito misturada com o tráfico de órgãos humanos.

DW África: Relativamente aos direitos humanos, no capítulo da migração ilegal, houve melhorias no país, se comparado com os últimos anos?

CD: As melhorias que posso mencionar é a ratificação das convenções e dos protocolos, mas é somente um passo e, nesta situação, não basta um passo, nós precisamos de complementar as ações legais com a criação de condições. Isso significa reforçar as instituições e a capacidade humana. E a capacidade humana sofre por tabela, a questão da corrupção neste setor não tem a ver em si com a migração, é porque é um setor frágil em que a corrupção está muito enraizada. Então, o combate à corrupção vai melhorar muito os apertos ligados à segurança e à migração, sobretudo a migração clandestina.

Nádia Issufo
Nádia Issufo Jornalista da DW África
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