"O MPLA não cumpriu nem o programa máximo, nem o mínimo"
12 de dezembro de 2013Um dos protagonistas do processo de independência de Angola foi António Alberto Neto, sobrinho de Agostinho Neto, líder histórico do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e primeiro presidente de Angola, depois da independência. António Alberto Neto nasceu no "Bairro Operário", em Luanda, no dia 16 de Junho de 1943 e desde os seus 19 anos de idade desempenhou atividades políticas.
Entre 1970 e 1973 foi convidado pelo seu tio, Agostinho Neto, para ser representante do MPLA nos países nórdicos da Europa.
Mais tarde rompeu, no entanto, com o MPLA, sendo mesmo preso, depois da independência, durante nove meses em Luanda. Na altura a Amnistia Internacional qualificou-o como prisioneiro de consciência.
Em Janeiro de 1991, António Alberto Neto funda o Partido Democrático Angolano (PDA), de que ainda é presidente. Concorreu às eleições de 1992 e conquistou na primeira volta com 2% dos votos o terceiro lugar na corrida à presidência, atrás dos dois líderes do MPLA e da UNITA, José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi.
A entrevista da DW África teve lugar na sua residência particular, no bairro luandense da Vila Alice.
DW África: O Dr. António Alberto Neto é um cidadão angolano que viveu os conturbados dias que antecederam à independência de Angola. Como descreveria a sua própria pessoa?
António Alberto Neto (AN): Sou angolano, mas sou cidadão do mundo e cedo comecei a aprender que Angola era um país que estava sob domínio colonial português. Havia outras colónias na altura. Ao ver o mapa de África lia: "África Ocidental Francesa". E pensava: "alto lá: significa que ali também existe uma colónia, povos que se foram adequando a uma situação colonial!"
E então, um dia, perguntei ao meu tio [Agostinho Neto, presidente do MPLA e primeiro presidente de Angola depois da independência]: "como é que a gente se vai libertar para que tenhamos uma Angola livre do colonialismo?" E ele respondeu: "olha, esse é um processo longo e complicado e diz respeito a muitos outros povos africanos." E assim fui cavando na minha consciência e descobrindo que era necessário ter uma visão não somente nacionalista, mas também pan-africana.
DW África: Como viveu a independência de Angola? Poderia descrever qual era a motivação na altura, nos anos 70, dessa luta pela independência?
AN: A nossa luta nunca foi uma luta contra o povo português, mas sim contra um regime que era necessário pôr fim. E realmente até se pode dizer que a revolução dos cravos aconteceu com a participação dos povos coloniais, porque a guerra já estava a tornar-se insustentável dos pontos de vista político, económico e mesmo militar.
Foi bom que o povo português, na altura, tivesse acreditado numa mudança de regime. E essa mudança de regime também foi benéfica para os povos colonizados, porque naturalmente beneficiou as negociações para a transferência do poder.
DW África: Haverá – com certeza – episódios na sua vida que o marcaram muito…
AN: Sim, houve muitos episódios que me marcaram a mim e também marcaram os destinos de Angola. Em 1959, 1960 o meu tio e presidente do MPLA, Dr. Agostinho Neto, veio ter comigo e disse: "olha Ninho" – era assim que eu era chamado – "nós estamos a precisar de uma bandeira e então vê lá se consegues conceber uma bandeira." E eu comecei a desenhar essa bandeira. Portanto posso hoje afirmar que a bandeira do MPLA foi por mim concebida, aqui na Rua João de Deus número 105…
DW África: Outro dos episódios que protagonizou: em 1973 o avião supersónico Concorde passa por Luanda e nesse contexto acontece uma coisa extraordinária. Pode falar sobre esse episódio?
AN: O Concorde estava a fazer voos experimentais em espaços aéreos e territórios de poder calorífico acrescentado. Então, durante a minha função como representante do MPLA nos países do norte da Europa, eu desloquei-me a Londres e – em conjunto com um grupo de apoio – tracei uma estratégia que consistia em dizer: o piloto da British Airways que vai levar o avião para Luanda, em vez de desfraldar a bandeira portuguesa, deve desfraldar a bandeira do MPLA.
E isso, de facto, aconteceu. E não queira saber o impacto que tal situação teve! Nesse dia tinha sido declarada tolerância de ponto em Luanda. Então todos – interessados na viação ou não – foram nesse dia ao Aeroporto Craveiro Lopes para ver o Concorde aterrar, porque foi a única vez que o Concorde lá foi. E em consequência disso alguns elementos mais reacionários da colonização fizeram a retaliação.
A retaliação foi, por exemplo, de atirar para a Baía de Luanda o carro do cônsul da Grã-Bretanha. Esse acontecimento representou para nós, e para toda a resistência, um enorme incentivo. Realmente foi muito importante.
DW África: Viajou para muitas partes do mundo, como representante do MPLA. Não se limitou aos países nórdicos da Europa…
AN: Estive em vários países em missão do MPLA. Lembro-me, por exemplo, da audiência que tivemos, no início dos anos 70, com Chu En-Lai, o primeiro-ministro da China, quando lá estivemos com o Lúcio Lara [líder histórico e primeiro secretário-geral do MPLA], o Agostinho Neto e mais dois comandantes.
Coisa curiosa: quando lá chegámos – ao meio do dia – disseram-nos: "vocês têm que ir dormir". E nós perguntámos: "dormir como? Então a audiência não será à tarde?" E eles responderam: "não, não, o Chu En-Lai só recebe à noite."
Então dormimos e às duas da manhã fomos recebidos por Chu En-Lai. Foi assim a nossa audiência. De salientar que foi aí que a cooperação entre o MPLA e o Partido Comunista da China começou. Existe, portanto, há um longo tempo e foi muito importante.
DW África: Também foi recebido noutros países da região, nomeadamente no Vietnam…
AN: Sim. Na altura até havia guerra no Vietnam. Estávamos em Hanói e havia bombardeamentos da aviação americana com B52 em território vietnamita. Tivemos vários contactos com o general Vo Nguyen Giap, herói da histórica batalha de Dien Bien Phu, de 1954, contra o domínio colonial francês no Vietname, e que se tornara um símbolo da luta contra o colonialismo. Tivemos outros contactos com as autoridades vietnamitas. Houve trocas de pontos de vista sobre a maneira de conceber e desenvolver a luta de libertação nacional num contexto em que aparentemente a parte agressora seria mais forte, mas que – no fundo – a razão dos povos colonizados é que venceria.
DW África: Também chegou a ir à Coreia do Norte…
AN: Estivemos, de facto, em Pyongyang. E aí uma coisa que me chamou a atenção foram os processos de culto de personalidade. Uma vez fomos, por exemplo, fazer uma visita a um pomar, a cerca de 15 quilómetros de Pyongyang, e o guia dizia: "olhem este pomar é lindo e é obra de Kim Il Sung". Íamos para outro sítio e eles diziam: "isto é obra de Kim Il Sung".
Visitámos uma base naval: "isto é obra de Kim Il Sung". E eu pensei: "realmente quando se constituem regimes de partido único o culto de personalidade é efetivo não é isso que eu pretendo". Eu queria lutar pela liberdade, pela democracia, pelo socialismo, mas não por esse tipo de critérios, em que todo o trabalho que é feito por um povo é declarado obra de uma única pessoa. Só nos regimes de partido único o culto da personalidade é uma das variáveis que eu nunca aceitei.
DW África: Foi por isso que saiu do MPLA?
AN: Em 1973 eu pedi a minha demissão de membro do MPLA e da JMPLA [Juventude do MPLA] por razões históricas muito claras que eu acabei de indicar: não aceito o princípio do partido único.
DW África: Depois de tanto empenho pela independência de Angola: acha que essa luta valeu a pena?
AN: A essa pergunta, quero responder em síntese: tem que haver sempre esperança. A esperança é a última a morrer.
DW África: Angola atingiu, de facto, os seus objetivos, os objetivos dos angolanos de serem livres e independentes?
AN: As situações económicas que o país atravessa são de tal ordem que até agora não se cumpriu – falo mesmo como ex-militante do MPLA – nem o programa máximo, nem o programa mínimo do MPLA. Existe uma assimetria de interesses de classe, em que há uma maioria da população de Angola que vive mal, com menos de dois dólares por dia.
Ora essa não é a visão que eu tive no início, nem é a visão de Agostinho Neto, nem a visão de muitos dos meus professores de universidade. Todos estávamos de acordo em que, quem estivesse a governar, fizesse tudo para eliminar três coisas: a ditadura, a corrupção e níveis insustentáveis de pobreza.