O brilho sujo dos diamantes angolanos - Entrevista com Rafael Marques
17 de setembro de 2011O ativista dos Direitos Humanos, Rafael Marques, continua a ser uma voz atenta e crítica perante a impunidade que se vive na região diamantífera das Lundas, em Angola. Este jornalista angolano, que se tem dedicado à investigação nesta área há já vários anos, não se cala perante os crimes praticados pelas autoridades contra as populações locais.
Inquieta-se com a corrupção em Angola, mas também a situação dos garimpeiros ilegais, que são maltratados e assassinados nas explorações de diamantes, com a cumplicidade de empresas privadas, militares e companhias de segurança.
Deutsche Welle: Se olharmos para a história da exploração dos diamantes em Angola é possível fazer uma equiparação a aquilo que é a temática do filme “Diamantes de Sangue”, de Danny Archer?
Rafael Marques: Eu acho que é um filme que de certo modo retrata uma realidade numa perspetiva ocidental, claro está, mas é uma realidade que pode ser vista em Angola.
Neste caso não de atrocidades cometidas por um grupo rebelde, mas pelo próprio Governo. E até em situações em que o Governo contrata também especialistas estrangeiros para aperfeiçoar os seus métodos de tortura e de matança daquelas populações radicadas nas áreas mineiras.
DW: O título do seu livro “Diamantes de Sangue…”, que parece recorrer ao filme, tem a pretensão também de despertar consciências sobre o caso angolano?
RM: É simplesmente o uso de um conceito apadrinhado pelas Nações Unidas, que é o conceito de diamantes de conflito também conhecidos como Diamantes de Sangue. Sabe que as Nações Unidas apoiaram a criação do processo de Kimberley destinado a impedir a entrada no mercado internacional de diamantes provenientes de áreas em conflito ou extraídos para manutenção de conflitos por parte de movimentos rebeldes.
Só que tem havido uma evolução contraditória na definição deste conceito do papel do processo de Kimberley. Por exemplo, o Zimbabué foi sancionado pelo processo de Kimberley pelas Nações Unidas, não pode vender diamantes de Marange por violação dos direitos humanos. Então há aqui um caso específico de um governo que sofre uma sanção.
No caso de Angola é o contrário, quanto mais o Governo comete abusos mais ele recebe apoios para estabelecer parcerias na região no sentido de abafar esta realidade. Isso tem acontecido muito até com organismos doadores internacionais.
A corrupção é a essência do regime
DW: Pelo conhecimento que tem da realidade angolana, a corrupção segue um ciclo ininterrupto ou as denúncias que tem feito tem permitido travar uma eventual tendência de crescimento?
RM: Penso que nesta fase já não é possível travar a corrupção porque ela é hoje a essência do próprio regime. E quanto mais se sentir ameaçado mais usará a corrupção para tentar manter-se no poder.
Quer dizer, a corrupção é, por um lado, o mecanismo principal de aliciamento de setores da sociedade para legitimar o poder e, por outro lado, também é o principal pomo de discórdia na sociedade angolana. Pomo que eventualmente até levará a um fim triste este mesmo regime na sua configuração atual de usurpador dos recursos do Estado para enriquecimento ilícito de uma mão cheia de dirigentes e suas famílias.
DW: Olhando concretamente para a situação nas Lundas, a região continuará a ser o foco central das suas denúncias?
RM: É um dever imperativo de denunciar estes abusos para que aquela população nas Lundas também conheça a paz como no resto de Angola.
Impunidade e silêncio são a norma
DW: Falas nas suas investigações de escravatura, do envolvimento de companhias de segurança, do silêncio das instituições como, por exemplo, do Ministério da Defesa e de empresas com interesses nos diamantes. Mas, também fala do envolvimento de cidadãos angolanos, russos, de instituições portuguesas e britânicas. Qual é a realidade hoje?
RM: Os generais usam o seu poder oficial para estabelecer acordos de parceria com empresas estrangeiras para no sentido de garantir o aumento das suas fortunas de forma ilícita e facilitar que estas empresas operem à margem da lei e com total impunidade. É o que está a acontecer.
DW: As autoridades continuam a manter silêncio em relação ao que se passa nas Lundas?
RM: Absolutamente. Silêncio e cumplicidade do processo de Kimberley das Nações Unidas. Porque a ONU tem responsabilidades acrescidas por ter apadrinhado a definição dos diamantes de conflito – e até porque durante muitos anos as Nações Unidas tiveram um painel sobre os diamantes em Angola para impedir que a UNITA continuasse a usar a extração de diamantes para financiar a guerra.
Mas não há nas convenções internacionais nenhum articulado que permita ou que dê legitimidade a um Governo para maltratar e matar o seu próprio povo. É isso que é preciso discutir, porque não é uma questão de soberania. Ultrapassa a questão da soberania quando há um regime que diariamente exercita o seu poder arbitrário violando a forma mais elementar da dignidade humana e do respeito pela vida.
DW: Diz que o que se passa nas Lundas é reflexo da política executada em Luanda. Continua a sofrer pressão política pelas denúncias que faz?
RM: Eu não me preocupo com as pressões que sofro porque tenho a consciência tranquila. Estou a cumprir com um dever profissional, com um dever cívico. Havendo dúvidas sobre aquilo que escrevo existem os tribunais para dirimir esta questão. E mais: eu não posso aceitar esta ideia de que como cidadão, por falar a verdade, devo ter medo. Porquê? Porque há uma razão muito específica. O silêncio daquela população que não tem voz não a impediu de ser morta, de ser torturada diariamente.
Então, em que circunstância o meu silêncio perante essas atrocidades contribuirá para alguma coisa. Eventualmente até pode contribuir para que eu tenha mais camisas ou mais calças, carros…, mas não é isso que me preocupa na vida. E para isso não preciso vender o sangue angolano para ter dinheiro no bolso.
DW: Então, tem clara consciência que as suas denúncias têm contribuído para alterar este estado de coisas na sociedade angolana?
RM: Como cidadão, como angolano, tenho de exercer a cidadania todos os dias, quaisquer que sejam as circunstâncias. Como profissional sou obrigado a agir de forma ética todos os dias, independentemente das circunstâncias, e é isso que é importante afirmar entre os angolanos.
Há pessoas que me disseram: «você há quatro, cinco anos ou mais que fala das Lundas, mas porquê sempre as Lundas?» E eu pergunto, porquê roubar sempre os diamantes do povo angolano? Porquê maltratar sempre o povo nas Lundas? Desde a época colonial que se vem fazendo isso. Então, os que fazem mal podem fazê-lo todos os dias e aqueles que procuram corrigir a situação só podem fazê-lo de forma pontual?
DW: Para isso a sua formação como antropólogo e jornalista tem contribuído muito para fundamentar as denúncias?
RM: É útil. Eu coloco o meu modesto conhecimento nessas áreas a serviço da sociedade, ao serviço da comunidade da qual faço parte. Eu quero através deste trabalho contribuir também para que a investigação em Angola seja algo constante, quotidiano, nas ações dos jornalistas, dos ativistas e de todos aqueles que procuram participar e melhorar a forma de gestão da República e garantir que Angola tenha um futuro diferente, onde o conhecimento permita a proteção dos mais desfavorecidos.
E às vezes faz-se passar a ideia em Angola que quando um indivíduo tem instrução não deve mais preocupar-se com os pobres ou com aqueles que não têm instrução. Eu penso o contrário, porque o desenvolvimento faz-se quando aqueles que têm um pouco mais de visão e conhecimento dão as suas mãos para ajudar os outros e é assim que em Angola se poderá construir uma sociedade diferente que valorize acima de tudo o ser humano, seja ele quem for.
DW: Os Direitos Humanos e a Liberdade de Expressão estão longe de ser respeitados em Angola?
RM: Estão longe de ser respeitados porque os cidadãos continuam à espera que seja o Governo por iniciativa própria a respeitar tais valores. É um regime que está no poder há 32 anos, não tem cultura de tolerância, não tem cultura de respeito por nada, exceto a arbitrariedade do poder. Quer dizer, não é uma questão de vontade de quem está no Governo, é uma questão inerente a cada angolano, é constitucional. Estes direitos devem ser observados a todo o tempo.