O drama das favelas em palco na Alemanha
"Eu quero ser feliz e morar tranquilamente na favela onde nasci", canta uma atriz alemã que interpreta uma vendedeira de picolé, gelado de água com sabor a frutas, cena que é interrompida por troca de disparos entre traficantes e a polícia.
"Os Ninguéns" é um exercício de dramaturgia do grupo de teatro Lusotaque, da Universidade de Colónia, que está em digressão na Alemanha e segue depois para França.
A história passa-se numa das favelas da cidade brasileira do Rio de Janeiro. A representação confunde-se com a realidade de um lugar onde os direitos fundamentais, as liberdades individuais, as diferenças sociais e o descaso das autoridades se misturam.
A situação "dolorosa" das favelas
"Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada... Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata", é um extrato de um poema de Eduardo Galeano que faz parte do argumento da peça, que retrata a invisibilidade de mais de 11 milhões de pessoas que vivem nas favelas do Brasil. Galeano (1940-2015) foi um escritor e jornalista uruguaio, autor de mais de trinta livros, traduzidos para cerca de vinte idiomas, que ganhou, em 2006, o Prémio Internacional de Direitos Humanos da organização não-governamental norte-americana Global Exchange.
Marianna Souza, produtora no Teatro Lusotaque e autora da peça, refere que esta foi a forma mais ilustrativa que se encontrou para mostrar uma realidade crítica. "Nós queremos mostrar a situação, que é muito dolorosa, contra a cultura brasileira, principalmente contra as pessoas. [Pretendemos mostrar] quem são as pessoas que mais sofrem no Brasil", afirma.
O teatro musical mistura drama, comédia e romance e traz sons clássicos da bossa nova e também do funk, originário das favelas.
Esse acervo cultural brasileiro é apresentado em língua portuguesa maioritariamente por estudantes da Universidade de Colónia.
"O único erro é morar na favela"
A estreia da peça foi em janeiro no Studiobühne Köln. E o desempenho dos jovens atores impressionou a audiência multicultural presente. Para o espetador português Sebastião Iken, o elenco "interpretou bem uma realidade brasileira, retratando personagens sociais como personagens de palco. Retratando em abstrato uma realidade brasileira, não apontando para pessoas concretas".
A cubana Jane Duret ficou comovida com a morte de inocentes nas favelas retratada n'"Os Ninguéns: "O único erro é morar na favela, mas acabam mortos por causa de um governo e uma segurança pública que não se importam com eles", lamentou a espetadora.
Depois de Colónia, a peça segue para a cidade alemã de Bona e, depois, para a cidade de Metz, em França.
A prática artística do grupo teatral Lusotaque está diretamente ligada à formação linguística e académica do Instituto Luso-Brasileiro, instituição académica na Universidade de Colónia, fundada em 1932 pelo romancista Leo Spitzer.
O Lusotaque existe há 14 anos e tem-se ocupado em representar críticas sociais de países de língua oficial portuguesa. Em abril do ano passado, no Studiobühne Köln, o grupo apresentou a "Kianda - da Santa que se tornou sereia", peça adaptada do romance "O outro pé de sereia" do autor moçambicano Mia Couto. Enredos de Pepetela e outros autores lusófonos já foram explorados nos anos anteriores.