O que faz o mundo árabe evitar responsabilidades em Gaza?
24 de novembro de 2023Ayman Safadi, ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia, um dos países no Médio Oriente que ainda dialogam com Israel, fez no sábado (18.11) uma declaração dura sobre o conflito na região. Para este responsável, a guerra que Tel Aviv trava contra o Hamas na Faixa de Gaza é uma "agressão flagrante" contra os civis palestinianos, que ameaça desestabilizar toda a região.
Ao impedir a entrega de alimentos, medicamentos e combustível à Faixa de Gaza, Israel estaria a comer "crimes de guerra", disse ainda.
No Médio Oriente, a Jordânia é vista como um Estado pró-Ocidente, mantendo relações oficiais com Israel desde meados da década de 1990. "Todos nós devemos denunciar, em alto e bom som, a catástrofe que a guerra israelita significa não apenas para a Faixa de Gaza mas para toda a região", afirmou o ministro no evento Diálogo Manama 2023, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos do Bahrein.
As palavras de Safadi deixam claro que até os países árabes que reconhecem diplomaticamente Israel estão a distanciar-se da resposta militar israelita ao ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro.
O facto de o Hamas ser classificado como organização terrorista na Alemanha, na União Europeia, nos EUA e em outros países não parece estar a desmobilizar grande parte da opinião pública. A solidariedade de muitos cidadãos dos países árabes pelos palestinianos da Faixa de Gaza parece prevalecer, especialmente num contexto de escalada do número de mortos desde o início da retaliação militar de Israel.
Porém, os países árabes não se mostram dispostos a participar no reestabelecimento de uma nova ordem política na Faixa de Gaza após o fim da guerra – o que ainda não se sabe quando ocorrerá. Safadi enfatiza que os Estados árabes também não estão dispostos a deixar que os altos-cargos de Israel façam o que lhes bem apetecer. Os representantes dos Emirados Árabes Unidos (EAU) e da Arábia Saudita expressaram opiniões semelhantes.
Preocupação em não ser visto como inimigo
Há motivos políticos que explicam a posição destes países. Por um lado, a questão da segurança – e se Israel realmente conseguirá aniquilar o Hamas. Safadi não acredita nisso. "Não entendo como é que esse objetivo possa ser alcançado", disse o ministro em Manama, citado pela agência de notícias alemã DPA. "O Hamas é uma ideia". Uma ideia não pode ser erradicada com bombas, afirmou.
Assumir responsabilidades políticas ou até mesmo militares no futuro da Faixa de Gaza deixaria a Jordânia embrulhada numa situação muito delicada – e vulnerável a uma possível acusação de "cumplicidade", o que seria perigoso em termos de política interna.
Nesse sentido, Safadi não vê o futuro político daquele enclave palestiniano como uma responsabilidade da Jordânia ou de qualquer outro país árabe: "Deixe-me ser bem claro", explicou. "Nenhum militar árabe irá para Gaza. Nenhum. Não seremos vistos como inimigos", sublinhou.
Postura ambivalente no Golfo
De acordo com Nicolas Fromm, cientista político da Universidade Helmut Schmidt, em Hamburgo, não é uma coincidência o facto de o ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia ter sido tão claro sobre o tema. "A Jordânia já tem um tratado de paz com Israel há muito tempo. Os dois países têm trabalhado juntos de várias maneiras há décadas. É por isso que o reino foi e continua a ser amplamente criticado em algumas partes do mundo árabe", explicou.
Outros Estados árabes, especialmente os do Golfo, estão em situação semelhante. Alguns deles, como os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein, só concluíram acordos de normalização com Israel há alguns anos. Outros, como a Arábia Saudita, mantinham boas relações com Israel até recentemente. É algo que pode ter os dias contados.
"A questão palestiniana continua a desempenhar um papel importante no mundo árabe e também tem um grande potencial de mobilização emocional e política", comenta Eckart Woertz, diretor para os assuntos do Médio Oriente no Instituto GIGA, em Hamburgo.
Mesmo assim, é provável que alguns países do Golfo tenham uma atitude mais ambivalente em relação ao conflito em Gaza, diz Woertz: "Alguns Estados [árabes] têm uma posição muito crítica sobre o Hamas. Afinal, é uma ramificação da Irmandade Muçulmana, que é considerada uma organização terrorista no Egito, na Arábia Saudita e nos Emirados", justificou.
Os governos desses países poderiam, portanto, ficar secretamente felizes se o Hamas fosse neutralizado na Faixa de Gaza ou, pelo menos, enfraquecido. Ao mesmo tempo, porém, as capitais árabes também reconhecem o sofrimento da população civil, afirma.
Menos verbas para a reconstrução
Outro grande desafio após o fim da guerra será ajudar a Faixa de Gaza a reerguer-se, pois já estava empobrecida economicamente mesmo antes do conflito. É improvável que este território, que é bloqueado por Israel e pelo Egito há vários anos, consiga fazer isso sozinho.
"Mas ninguém, nem Israel, nem os Estados Unidos, nem os Estados árabes ou os líderes palestinianos, querem assumir a responsabilidade por isso", escreveu a revista The Economist após o evento em Manama. Mesmo antes da guerra, os países mais ricos do Golfo estavam já cansados da 'diplomacia do cheque em branco', refere a referida publicação.
"Eles já reconstruíram a Faixa de Gaza várias vezes". Se a reconstrução da Faixa de Gaza "não fizer parte de um processo de paz sério, eles não a pagarão", opinou à revista The Economist um diplomata do Ocidente que não foi identificado.
Woertz também considera que uma solução política duradoura, de dois Estados, é o pré-requisito mínimo para um possível envolvimento árabe na reconstrução da Faixa de Gaza: "Não se pode simplesmente reconstruir [Gaza] a cada meia dúzia de anos e depois destruir novamente. A União Europeia e os países do Golfo provavelmente têm uma visão semelhante".
O cientista político Nicolas Fromm acrescenta que os países do Golfo também demonstraram, de modo geral, maior contenção financeira nos últimos 15 anos. "Antes, a racionalidade económica era colocada em segundo plano. Mas a população ficou mais consciente sobre os custos. Muitos cidadãos são agora a favor de uma maior restrição", considera.
Receio de expansão do conflito
A elite política dos países do Golfo também está interessada em manter o conflito fora da sua própria região, segundo uma análise da revista Al-Monitor.
O Hezbollah, no Líbano, e os rebeldes houthis, no Iémen, ambos apoiados pelo Irão, podem inflamar ainda mais o conflito, assim como o próprio Governo do Irão.
O mesmo vale para as milícias pró-iranianas no Iraque. Os houthis, por exemplo, capturaram um navio de carga no Mar Vermelho há poucos dias, que acusaram de ter ligações com Israel. Este e outros incidentes como este também podem elevar a tensão na região.
Mas o risco de uma escalada do conflito também poderia levar alguns países árabes a envolverem-se mais em busca de uma solução – e em prol da sua própria segurança. Essa é a opinião de Fromm: "Se isso não for bem-sucedido, continuará a haver sentimentos de frustração, raiva e, portanto, violência", conclui.