O rap como crítica ao narcotráfico na Guiné-Bissau
26 de junho de 2014Anualmente a 26 de junho, assinala-se o dia Dia Internacional contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas, criado pela Organização das Nações Unidas, em 1987, para reiterar o esforço dos países para acabar com o abuso de drogas a nível global.
Quando abordando a questão da rota do tráfico de droga, principalmente da cocaína da América do Sul com destino à Europa, a Guiné-Bissau torna-se um país incontornável.
Em 2008, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), num relatório, referia-se à Guiné-Bissau como um país em risco de se tornar um narco-Estado, uma definição que causou uma forte reação nos investigadores Miguel de Barros e Patrícia Godinho Gomes, que decidiram abordar o tema de um perspetiva endógena, dando voz a uma camada importante e muitas vezes silenciada da sociedade guineense: os jovens.
Rejeição do termo "Narco-Estado"
“Isto é uma questão que nos preocupa, a nós guineenses, que o nosso país possa ser identificado como o primeiro narco-Estado em África. Nós declinamos essa visão, não estamos de acordo e, por isso, temos procurado demonstrar através, precisamente, dessas reações internas ao problema. Porque quando os jovens cantam a música rap, eles não cantam só para eles próprios, eles referem-se à voz dos jovens guineenses, que é uma boa parte da população”, explica a historiadora guineense, atualmente a residir em Itália, onde se doutorou em História e Instituições da África pela Universidade de Cagliari.
O sociólogo e a historiadora fizeram uma análise das narrativas da música rap guineense sobre o narcotráfico, que integraram no artigo mais abrangente “Les conséquences du narcotrafic sur un État fragile: le cas de la Guinée-Bissau”, publicado em 2013 na revista Alternatives du Sud.
A ideia, explica Barros é explorar, através do rap, “como é que, perante a fragilidade das instituições, e a incapacidade da sociedade se mobilizar contra o fenómeno, existem bolsas de resistência, que produzem informação, que produzem conteúdo, e conseguem mobilizar franjas da sociedade a posicionarem-se contra o fenómeno do narcotráfico”.
A música rap na Guiné-Bissau surgiu após a liberalização política, mas ganhou terreno principalmente após o final da guerra civil, muitas vezes incorporando ritmos e instrumentos tradicionais do país, e está enraizada na forte tradição oral existente no país, explica Gomes. O rap guineense sempre foi marcado por temáticas de intervenção social e política: denúncias de corrupção, delinquência juvenil, entre outros. Neste contexto, o narcotráfico é um tema inevitável.
Crítica e denúncia
Diferentemente do que acontece noutros países, em que a música muitas vezes glorifica o narcotráfico e os seus intervenientes, na Guiné-Bissau, asseguram investigadores e rappers, a situação é bem diferente. Lesmes Monteiro, do grupo Torres Gémeos, que, na sua música “Culpadus”, de 2008, falam de corrupção, narcotráfico e impunidade, explica que “a música rap tem muita influência no país” porque consegue mobilizar muita gente nos concertos.
“Eu não considero a Guiné-Bissau um Narco-Estado. Pode existir um momento em que, não só a nível interno como a nível internacional, se falou muito deste flagelo, mas com o que se vive na realidade, não se consegue ver olho nu a dimensão do narcotráfico”, diz o jovem de 28 anos, formado em Direito.
Para Patrícia Gomes, os três principais objetivos da música "narco-rap" guineense são: protestar sobre o problema do narcotráfico e o impacto que este tem na sociedade, estimular a juventude a tomar uma posição e denunciar o envolvimento da classe dirigente. A diversidade destes jovens rappers sustenta a forma como as suas preocupações se tornam representativas da juventude guineense, explica Miguel de Barros, uma vez que eles vêm da capital, mas também da periferia, dos meios rurais e da diáspora.
Outro tema musical contemplado no estudo é “Contra”, escrito em 2007 pelo grupo Cientistas Realistas, do qual faz parte Edmar Nhaga, também ele formado em Direito. O jovem, que é presidente do setor de Bissau da Liga Guineense de Direitos Humanos, diz que o que o motivou a escrever estas músicas de denúncia foi ter observado uma inversão dos valores na sociedade guineense por causa do narcotráfico. “Temos um movimento de hip hop como um movimento cívico contestatário de diferentes cenários sociais e da má governação que geralmente acontece”, afirma.
O percurso de Zaino Zavad, cujo nome artístico é "As One", também incluído no estudo através da sua música "Kaminhus", é um pouco diferente. O jovem acabou de terminar os seus estudos em Lisboa e quer regressar ao seu país natal, mas a sua carreira musical não foi motivada pela contestação política: "Logo no início da minha carreira, eu escrevia musicas que falavam sobre outros temas, que não eram relacionados com política. Mas quando me apercebi que estava num caminho que talvez não era o ideal para o meu país, resolvi começar a cantar crítica".
Otimismo quanto ao futuro
Apesar da forte crítica à situacao do narcotráfico nos últimos anos e das suas consequências para a sociedade, existe algum otimismo. Lesmes Monteiro fala principalmente no passado quando se refere ao problema. Isso quererá dizer que a situação tem vindo a melhorar? “Nos últimos tempos, talvez por causa da conjugação do esforço das autoridades internacionais, principalmente da Interpol, em conjugação com a polícia judiciária nacional, eu tenho a certeza que este fenómeno tem estado a diminuir consideravelmente”. Mesmo assim, Monteiro faz um apelo à comunidade internacional para que apoie a Guiné-Bissau no combate ao problema.
Também Edmar Nhaga vê o futuro com bons olhos, principalmente tendo em conta a tomada de posse do novo Governo recém-eleito. “O que se nota na sociedade guineense é que estamos otimistas quanto às novas autoridades eleitas e pensamos que estarão em condições de fazer algo, não obstante todos os desafios que têm pela frente”.
Para Miguel de Barros é “um sinal de esperança que haja uma geração comprometida com a transformação social e política da Guiné-Bissau, na qual se assumem como atores incontornáveis com uma palavra a dizer, e bastante vigilantes no processo de governação”.