ONG alertam para danos colaterais da Covid-19 em África
3 de junho de 2020Já em fevereiro, quando o surto do novo coronavírus estava restrito quase exclusivamente à China, os especialistas soaram o alarme: assim que o vírus chegasse a África, esperava-se uma catástrofe incontrolável, devido aos sistemas precários de saúde.
Até agora, no entanto, os números da Covid-19 não fornecem um cenário de catástrofe para o continente africano ‒ provavelmente, também porque os governos locais reagiram cedo e de forma abrangente.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 100 mil pessoas foram comprovadamente infectadas pelo novo coronavírus em África. Mesmo que o número real de casos seja provavelmente maior devido à falta de testagem ‒ já está claro que a evolução da pandemia no continente é menos fatal do que, por exemplo, na Europa.
Até agora, em África, foram relatadas 3.100 mortes relacionadas com a doença pulmonar Covid-19. Em comparação: quando 100 mil casos de infecção pelo novo coronavírus foram relatados na Europa, já se contabilizavam 4.900 mortes. A análise inicial sugere que a taxa de mortalidade relativamente baixa pode ter a ver com a estrutura demográfica do continente africano, onde mais de 60% da população tem menos de 25 anos.
Sem vacinação de rotina para crianças
Portanto, é ainda mais necessário analisar os "danos colaterais" da luta contra o coronavírus, afirma Anne Jung, responsável de saúde global na organização humanitária Medico International. A responsável ressalta que, devido aos abrangentes confinamentos em muitos países africanos, vacinas de rotina não puderam ser administradas a crianças, como contra o sarampo. Anne Jung diz temer que medidas diretas para conter a pandemia de Covid-19 possam levar a um aumento de outras doenças infecciosas, especialmente em crianças.
Estudos atuais da OMS parecem confirmar os receios de Jung: 117 milhões de crianças em 24 países, a maioria deles em África, não puderam receber a vacina contra o sarampo devido à pandemia. Gavi, uma aliança de vacinas e imunização, calcula que 13,5 milhões de pessoas não receberam importantes vacinas por causa da suspensão de campanhas de vacinação. Por sua vez, isso pode levar ao ressurgimento de doenças infecciosas, como sarampo ou poliomielite.
Coronavírus trava luta contra HIV-SIDA e tuberculose
Como no resto do mundo, muitos países africanos estão a reestruturar os seus sistemas de saúde para enfrentar a Covid-19. Mas o que parece razoável implica que, em muitos lugares, vários programas rotineiros da área da saúde tenham sido cancelados. Segundo Anne Jung, já existem problemas no combate à tuberculose, por exemplo. Essa doença é tão contagiosa como a Covid-19 e é geralmente fatal: "Devido ao coronavírus, as máscaras necessárias para tratar pacientes com tuberculose estão em falta em toda a África", disse Jung.
A ONG Parceria Stop TB adverte que as interrupções nos cuidados de saúde relacionadas com a Covid-19 na África Subsaariana podem resultar em 6,3 milhões de casos adicionais de tuberculose e em 1,4 milhões de mortes a mais entre 2020 e 2025. Além disso, principalmente em África, a tuberculose é frequentemente associada ao HIV/SIDA.
Segundo um estudo da OMS e do UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/SIDA), atualmente, o tratamento de pacientes com doenças relacionadas com o HIV também está a sofrer restrições. Como não se consegue garantir o fornecimento de medicamentos antirretrovirais em muitos lugares, neste e no próximo ano mais de 500 mil pessoas a mais poderão morrer por doenças relacionadas com o HIV/SIDA.
Dobro dos casos de malária?
"Com ou sem o coronavírus: a malária é e continua a ser, de longe, a principal causa de morte em África, especialmente as crianças são afetadas", diz Javier Macias, médico espanhol que trabalha como consultor há mais de 30 anos em vários países africanos e que está atualmente em Angola. Em conversa com a DW, Macias alertou que, este ano, o número de mortos por malária em África poderá ser o dobro de anos anteriores, se a luta contra a doença for dificultada pela pandemia do novo coronavírus.
"Aqui em Angola já é fato que remédios contra a malária e mosquiteiros não estão a chegar aos afetados. Tudo isso porque o sistema de saúde está concentrado principalmente no combate à Covid-19", explica Macias. O médico relatou um caso específico em Huambo, segunda maior cidade do país: um vendedor ambulante com sintomas agudos de malária foi para o hospital, mas foi enviado para casa com a observação de que "apenas os casos mais urgentes, bem como os casos de Covid-19 estão a ser tratados".
Já no final de abril, a OMS tinha já alertado para um aumento iminente das mortes por malária: segundo a organização, neste ano, na pior das hipóteses, podem-se esperar 769 mil mortes por malária na África Subsaariana, ou seja, duas vezes mais do que em 2018. Em comparação: no pior cenário da epidemia do novo coronavírus, a OMS está a prever para 2020 entre 83 mil e 190 mil mortes diretas por Covid-19 no continente africano ‒ e apenas se o vírus for capaz de se espalhar descontroladamente, sem que sejam tomadas medidas.
Fome como dano colateral
Mas os danos colaterais do coronavírus não se restringem apenas às consequências de outras doenças, enfatiza Reimund Reubelt: "O coronavírus também pode matar pela fome". O chefe da organização humanitária Hope Sign alertou, em entrevista à DW: "Grande parte do território africano vem sendo abalado há décadas pela fome, que afeta atualmente até 250 milhões de pessoas. E agora vem um vírus que acirra ainda mais a má situação alimentar".
Segundo o ativista, muitas pessoas conseguem comprar ainda menos alimentos porque os preços aumentaram devido à crise pandémica. Por causa dos confinamentos, trabalhadores perderam o emprego e já não ganham dinheiro. Os bloqueios dificultaram o abastecimento, explica Reubelt. "Não apenas o vírus em si, mas também os efeitos das medidas de combate são um fardo enorme para as pessoas. Em combinação com a fome, a Covid-19 pode tornar-se um flagelo mortal em África", teme Reubelt.
Thomas Beckmann, da Diakonie Katastrophenhilfe, organização de ajuda de emergência da Igreja luterana, vê a situação da mesma forma: "As medidas de combate ao coronavírus adotadas por muitos países africanos aumentaram significativamente a fome. Os campos não podem mais ser cultivados devido a restrições de circulação".
A situação na África Oriental, onde existem atualmente enormes pragas de gafanhotos, é particularmente dramática: "A situação alimentar já estava ameaçada por essa praga e agora vem o coronavírus, ou seja, mais uma crise", resumiu o porta-voz da Diakonie Katastrophenhilfe.