Adérito Caldeira, povo moçambicano paga dívidas do país
1 de novembro de 2016Até há poucos anos, Moçambique era tido como um caso de sucesso em termos de cooperação internacional. Governos como o da Alemanha apontavam o país da África Austral como um bom exemplo em termos de políticas de desenvolvimento. Atualmente, porém, os mais de 2 mil milhões de dólares (1,82 mil milhões de euros) que as três empresas EMATUM, ProIndicus e Mozambique Asset Management (MAM) emprestaram com garantias do Estado mas sem aprovação do Parlamento, causaram uma crise económica em Moçambique e abalaram a confiança dos países doadores e de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.
Em entrevista à DW, o jornalista Adérito Caldeira, redator-chefe do jornal @Verdade, que também é parceiro da DW África, falou sobre o endividamento do país:
DW: Moçambique teve um aumento espetacular de sua dívida, que passou de 38% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2011 para estimados 130% no final 2016. Como é possível um país endividar-se tanto em tão pouco tempo?
Adériro Caldeira (AC): É possível porque o Governo empenhou-se bastante em contrair essa dívidas. Essas não aconteceram por acaso, apesar de se tentar transmitir e impressão de algum descontrole e de que as contas se acumularam sem ninguém saber muito bem o motivo. Eu julgo, no entanto, que há pessoas no Governo – no atual e no anterior – que tenham plena noção, e sempre tiveram, ao longo do tempo em que as dívidas foram contraídas.
DW: As dívidas foram contraídas por quem e para quê?
(AC): Por muitos. Há empresas privadas, há instituições do Estado, mas em última análise foram todas garantidas pelo Governo de Moçambique e esse é o denominador comum. É preciso ter atenção: mesmo estes números sobre dívida anunciados recentemente podem não ser ainda os números finais. Hoje (27.10), por exemplo, sabemos que os aeroportos também contraíram muita dívida com garantia do Estado e que não está contabilizada nas contas desse. Podem haver outras empresas do Estado que também tenham contraído e nós não tenhamos conhecimento. Portanto, julgo que parte da auditoria, que em princípio deverá acontecer, poderá ajudar-nos a clarificar até onde estamos a ir. E não me espantaria que [a dívida] fosse maior do que estes números que nós sabemos hoje.
DW: Acredita que realmente haverá uma auditoria independente destas dívidas que foram ocultadas ao parlamento e ao público moçambicano?
(AC): Acredito que será uma auditoria profissional. O FMI, no entanto, não é muito independente, pois tem os seus interesses todos envolvidos, tem parcerias e interesses com o Governo. Acredito que as instituições financeiras a lidar com Moçambique deverão ficar com uma ideia bem mais realista. Porém não tenho certeza de que nós moçambicanos poderemos saber mais. Nós sempre tivemos a ideia de que Moçambique tem muitas dívidas e isso nunca nos fez muita diferença - nem antes da reestruturação, que aconteceu nos anos 90, e muito menos agora. Faz-nos alguma confusão agora porque sentimos todos os dias, mas também há a expetativa que, assim como pordoaram um dia, ela [a dívida] poderá ser sempre perdoada.
DW: O Governo diz que a dívida e a resolução do pagamento da dívida não iria afetar os gastos sociais. É verdade essa afirmação?
(AC): Não é e não foi ao longo do ano de 2016. Não digo isso em relação aos efeitos indiretos; por exemplo, da inflação e da desvalorização do dólar. Mas, diretamente, orçamentos de áreas sociais do Governo como educação e saúde perderam muito desse dinheiro; que nunca foi suficiente, mas ainda assim foi cortado em 2016. Na proposta do orçamento para 2017 também estão a ser cortados.
DW: Significa então que quem paga essa dívida é o povo moçambicano e não o Governo e as empresas que pertencem ao Estado, de forma direta ou indireta, que contraíram essas dívidas do país?
(AC): Sem dúvidas. O povo está a pagar e assim continuará.
DW: Qual peso tem a sociedade civil e as organizações em Moçambique que exigem uma auditoria e mais conhecimento sobre como e quem contraiu a dívida? Há um poder que obrigue o Governo a colocar tais informações em cima da mesa?
(AC): As organizações da sociedade civil têm feito um trabalho muito bom. Elas têm tido o poder de mostrar, mas acabam por não conseguir influenciar. Quase ninguém, que não seja o próprio partido FRELIMO, consegue influenciar fundamentalmente as questões-chaves do nosso desenvolvimento e da nossa vida.
DW: A pressão, então, deve vir principalmente dos doadores que anunciaram corte em sua ajuda ao orçamento moçambicano?
(AC): Sim, ajudam a fazer pressão; mas, de novo, não sei até que ponto esta pressão dos doadores irá refleterir-se positivamente para o povo, pois hoje nós sabemos que os doadores estão preocupados também porque poderão ter perdido algum dinheiro ou terão sido eventualmente ludibriados em todo o processo das dívidas que estamos conhecendo.
DW: Há o lado do credor, portanto dos bancos que colocaram esta dívida das empresas como a EMATUM, ProIndicos e Mozambique Asset Management (MAM) no mercado, e que venderam a dívida aos investidores. Nesse processo em que se busca esclarecer como decorreu o endividamento, os bancos tem tido um papel relativamente invisível. É justificável?
(AC): É como todos os bancos fazem: tem sempre este papel em que se parece que não foi nada muito bem com eles. É natural que com estes também assim o seja.
DW: Seria preciso por parte dos doadores ocidentais exercerem mais pressão sobre os bancos, como neste caso o Credit Suisse ou o Banco Russo VTB - Bank, para que se evite uma situação semelhante no futuro?
(AC): Eu não sei que tipo de pressão os doadores podem fazer, porque nós vemos que estas situações de bancos e países não são propriamente situações novas. A comunidade internacional não tem conseguido fazer muito. Não sei por que, por exemplo, os contratos entre bancos, estados, países e empresas de estados são mais blindados do que outros. Olhamos para alguns desses contratos e os bancos estão protegidos contra tudo e todos. Por outro lado, nós, que deveríamos ser mais protegidos como Estado soberano, não conseguimos ser. Como não conseguiu ser a Grécia. Como não conseguiu ser Portugal, além de outros casos. Não sei até que ponto a comunidade internacional pode, de certa forma, influenciar positivamente. Eu sou cético. Imagino que interessa haver maior conhecimento do que realmente se passa em Moçambique, mas não no sentido de responsabilização.
DW: A situação económica em Moçambique é realmente difícil. A inflação chega a cerca de 30%; as taxas de juros do Banco Central estão acima dos 20%; o crescimento previsto para 2017 é de algo como 3% a 4% e ainda há o alto endividamento. Como o país poderá sair desse impasse?
(AC): Julgo que, tal como eu, ninguém o sabe (risos). O Governo diz que nós devemos produzir mais - dando a sensação que os moçambicanos não trabalham, de que são preguiçosos. Mas, se olharmos para os 41 anos da nossa independência, não produzimos muita comida ao longo desses anos. Apesar das guerras, tivemos períodos de paz e nem assim conseguimos produzir comida. Em Moçambique havia uma indústria que funcionava, mas hoje, por exemplo, as capulanas - um símbolo nosso e para o exterior -, nem sequer são feitas no país. Então não sei qual é receita. O Governo, pelos sinais que dá, também não me parece saber muito bem. As decisões políticas e práticas que tem tomado são, de certa forma, para ganhar tempo. Chegou há poucos dias a Moçambique um representante das Nações Unidas ligado às mudanças climáticas e, pelo que eu soube, há pelo menos 200 milhões de dólares (cerca de 182 milhões de euros) disponíveis para combater as mudanças climáticas. Não conheço os planos, mas pela experiência que temos, esse dinheiro não será para os pobres e os camponeses diretamente afetados. Não sei de que formas isso deverá efetivamente ajudar. São aquelas almofadas de oxigênio: quanto mais ajuda, seja doação ou investimento que entra em divisas para Moçambique, mais se minimiza a desvalorização do metical. A partir do momento em que saímos da desvalorização, em que a inflação fica mais controlada, voltamos a ser um caso de sucesso, mas os problemas voltam a ficar em banho-maria.