Pedro Martins, o prisioneiro mais jovem do Tarrafal
24 de outubro de 2014Foi Pedro Martins que deu a notícia da morte do fundador do PAIGC, Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973, aos companheiros.
Ele e todos os presos políticos que se encontravam no campo de concentração do Tarrafal seriam libertados a 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal.
Atualmente, o presidente da Associação Cabo-Verdiana dos Ex-Presos Políticos no Tarrafal de Santiago trabalha como arquiteto na Cidade da Praia.
Em entrevista à DW África, Pedro Martins começa por recordar o dia em que foi preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), na sequência da tomada do barco Pérola do Oceano, em agosto de 1970, em Santiago. Uma armadilha preparada por José Reis Borges, que se fazia passar por coronel do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e estava ao serviço da polícia política portuguesa, e na qual foram apanhados 11 cabo-verdianos.
DW África: Lembra-se bem deste dia? Como é que tudo aconteceu?
Pedro Martins (PM): Lembro-me muito bem. Eu estava precisamente no Tarrafal, a tentar organizar o partido na clandestinidade. Coincidentemente estávamos a fazer o levantamento do Campo de Concentração do Tarrafal. Porque nessa altura também não se punha de lado a questão da luta armada pela libertação de Cabo Verde.
Essa situação com o senhor Reis Borges é uma situação que continuo a investigar, porque depois tive informações de que ele esteve reunido com o ministro dos Negócios Estrangeiros [de Portugal], que nessa altura era Silva Cunha.
DW África: Ou seja, esta operação até pode ter sido preparada pela PIDE a partir de Lisboa?
PM: Sim, estou convencido que essa ação foi iniciada e controlada em Portugal sem o conhecimento do Governo local. Tudo leva a crer que não estavam no mesmo diapasão, até porque usaram esse Reis Borges para os ajudar a interrogar. José Borges aproveitou-se de alguns militantes do partido que tinham ligação comigo e, quando foi apanhado, entregou-os. E eu fui para a prisão. Felizmente no meu caso, e com muito orgulho, ninguém foi preso atrás de mim.
DW África: Passa sete meses na Cadeia Civil da Praia e depois é transferido para o Campo de Concentração do Tarrafal, em 1971. O que sentiu quando aí entrou? No seu livro "Testemunho de um Combatente" fala num "ambiente quase lunar".
PM: Foi um período bastante difícil porque coincidiu com o período de tortura da PIDE. Foram sete meses. Queriam que eu lhes falasse sobre o partido aqui em Cabo Verde na clandestinidade e, pelo facto de ter recusado, deve imaginar o que é que passámos nessa altura. Fomos os primeiros presos políticos a quem recusaram julgamento. Fomos enviados para o Campo de Concentração do Tarrafal, sem julgamento, sem nada. Foi uma situação de choque tremenda. Foi um sítio que foi planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas.
DW África: E além de ter estado preso e sem direito a julgamento quatro anos também foi torturado. Alguma vez pensou desistir ou quase perdeu a esperança?
PM: Houve momentos difíceis. Eu tenho um grande orgulho por ter resistido àquilo, mas não foi simples. Foram momentos horríveis. Ainda hoje vivo algumas consequências daquilo porque nós somos humanos e temos limites. Eu podia não ter resistido.
DW África: O que fazia para combater a depressão e o isolamento?
PM: Tentávamos fazer tudo o que era possível. Por exemplo, eu estudei aí [7º ano] e até tinha disciplinas como Físico-Química, Matemática, Desenho.
DW África: E como era estudar num campo de concentração?
PM: Era o desenrascar no limite. Eu lembro-me, por exemplo, que tinha exames de Físico-Química e tinha de fazer experiências químicas. E imaginava que punha pedaços disso e daquilo numa proveta, punha ácido, via determinadas reações, com fumos amarelos ou azuis. Lembro-me dos camponeses que estavam aí detidos, presos políticos, e que iam dizer aos colegas mais ilustrados que alguma coisa não estava bem com o Pedro porque ele estava a ver fumos amarelos!
Mas foi um escape ter essa possibilidade. Porque quando chegámos ao campo de concentração puseram-me numa cela dentro de outra cela. Ficávamos isolados 24 horas por dia. Mesmo a pequena cama que tínhamos aí, e que teoricamente deveria ter um lençol branco, tínhamos de apalpar para saber onde estava. Aquilo era repressão permanente. Nós não nos podíamos chegar, mesmo quando tínhamos intervalo, a dois ou três metros do arame farpado, porque se não, segundo eles, havia ordens para dispararem contra nós.
E provocavam-nos. Por exemplo, nós tínhamos recusado a bandeira portuguesa porque tínhamos a nossa, a bandeira de estrela negra do PAIGC, e aos domingos obrigavam-nos a perfilar, punham-nos em posição de sentido e hasteavam a bandeira portuguesa.
Não podíamos protestar contra a alimentação, que era horrível, os maus-tratos, a falta de tratamentos médicos, mosquitos por todo o lado, calor.
DW África: Às vezes os seus pais também o visitavam. Como eram estes momentos? De muita emoção?
PM: De muita emoção e às vezes era difícil. Quando a minha mãe me visitou pela primeira vez disse-lhe que estava tudo bem, para não lhe dar tempo de reagir emocionalmente. Mas mãe é sempre mãe e, de repente, as lágrimas começam a cair e não há nada que pare aquilo. Vermos a nossa família aí dava-nos um bocadinho de força, embora avisássemos para não nos visitarem assim tanto. Não sei se aquilo era algum conforto ou desconforto.
Havia toda uma cerimónia repressiva que se fazia. Para se entrar no campo tinha de se passar por várias barreiras de polícias, tropas, guardas auxiliares. E depois era-nos dado um sítio de dois metros e meio por três. E quando, por exemplo, no meu caso iam os meus familiares, que eles pensavam que tinham alguma ligação com o movimento de libertação, o PAIGC, num sítio tão pequeno como aquele punham cinco ou seis polícias. Era uma pressão tremenda.
DW África: E esta pressão física e psicológica a que estavam sujeitos também tinha reflexos negativos na convivência entre os próprios detidos?
PM: A repressão que nós sofríamos entrava em nós e tornava-nos revoltados. Mas fazíamos tudo para que houvesse um equilíbrio. Fizemos tudo, por exemplo, para que os camponeses que tinham menos formação estudassem. Conseguiram estudar, tiveram possibilidade até de fazer alguns exames. Aumentámos a capacidade cultural das pessoas que aí estavam. E até procurámos ajudar os angolanos que estavam do outro lado. Às vezes tínhamos de mandar bilhetes, mas isso era feito debaixo de uma pressão tremenda. Porque nós já tínhamos infiltrados no campo, tínhamos guardas aí dentro, até tínhamos um rádio clandestino.
DW África: Precisamente. Tinham um transístor clandestino através do qual conseguiam captar várias emissoras e faziam um resumo noticioso que depois liam na casa de banho. Era a famosa "rádio retrete". O que ouviam?
PM: Ouvíamos tudo. Aliás, eu não ouvia diretamente. Havia um preso chamado Luís Fonseca que nessa altura era o responsável pelo rádio. De vez em quando, o rádio descomandava-se e tínhamos de o mandar para fora para ser consertado. Mas ele é que escutava aquilo, escrevia as informações o mais resumidamente possível e punha aí. Só quatro pessoas é que conheciam aquilo. Era clandestinidade entre clandestinidade. O dia mais crítico foi o dia em que Amílcar Cabral foi assassinado porque nós não quisemos acreditar.
DW África: E foi precisamente o Pedro Martins que teve de dar a notícia da morte de Amílcar Cabral aos seus colegas. Como é que foram as reacções?
PM: Amílcar aqui ganhou um estatuto de semi-deus. Era quase imortal. Foi a primeira vez que vi homens daquela idade a chorar. Mas depois tínhamos de disfarçar porque eles não podiam aperceber-se que nós tínhamos essa informação.
DW África: A sua libertação e de todos os políticos do Tarrafal acontece a 1 de maio de 1974, cinco dias após o 25 de Abril em Portugal. São recebidos como heróis por milhares de pessoas na rua. Era um panorama quase surrealista?
PM: Muito surrealista. Particularmente dentro da prisão do Tarrafal porque nós soubemos quase de imediato do golpe de Estado, mas nós não podíamos saber de nada disso. O mais dramático foi que o chefe da polícia ia tirar-me da cela, queria dizer-me o que tinha acontecido, mas não queria passar informações. Enfim, ele depois abriu-se e pediu-me proteção.
E eu disse: Não, eu aqui sou um preso. [Estava preocupado com] as coisas que aconteceram noutros sítios onde houve vingança. E eu disse que aqui isso não iria acontecer. Por incrível que pareça, esse senhor depois ia perguntar-me se não precisava de nada, ia comprar-me pães. Uma situação surrealista!
Mas no fim, quando saímos, lembro-me que estava o comandante do exército aqui em Santiago e um responsável, procurador da República, e puseram-me no meio.
Parece-me que a ideia deles era levar-me para junto da população - porque havia milhares de pessoas aí – e pôr-me fora. A população apanhava-me e ia-se embora. Só que lá dentro, a meio do caminho, o ambiente era eletrizante e era uma oportunidade única. Eu levantei a mão e gritei: Viva a independência de Cabo Verde! Viva Amílcar Cabral! E a população invadiu o campo, passando por cima das tropas. Aquilo podia ter criado confusão. Felizmente não criou. E nós fomos recebidos como libertadores, digamos assim, com muito entusiasmo em todas as vilas. Foi um dia memorável. Quando chegámos a Santa Catarina, que era o centro mais influente da luta de libertação, lembro-me de ver o meu pai com um megafone a denunciar o campo de concentração.
DW África: E os dias que se seguiram foram tão intensos quanto o primeiro? A euforia continuou?
PM: Continuou, mas de outra maneira. Eu só tive oportunidade de passar um dia com os meus familiares porque era preciso organizar politicamente o país. No dia seguinte, a minha mãe foi perguntar-me se não a tinha sentido no meu quarto. Eu disse: Não, mas o que foste fazer, mãe? Ela respondeu: Eu não acreditei, fui apalpar para ver se, de facto, já tinhas chegado a casa. No dia seguinte, já estava na Cidade da Praia para fazer retratos de Amílcar Cabral – porque eu pinto, faço desenhos – e para preparar o primeiro comício político da nossa História, que foi no dia 4 de maio.
DW África: Há três anos, a Universidade do Mindelo atribuiu o doutoramento honoris causa a Adriano Moreira, antigo ministro do Ultramar responsável pela reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal, em 1961. Sentiu que esta homenagem foi um insulto?
PM: Foi um grande insulto. E, infelizmente, estiveram nessa cerimónia altos funcionários e dirigentes do país. Há que haver respeito. Um indivíduo que mete muitos estudantes e professores no Tarrafal e depois aparece aqui a dizer – e até a mentir – que ele não foi o autor daquela legislação. Lembro-me que até o jornal [português] Público publicou aquilo numa edição de domingo. Foi uma vergonha.
DW África: Há tempos fundou a Associação de Combatentes da Liberdade da Pátria. Como está a situação dos antigos combatentes? Estão, de certo modo, abandonados ou esquecidos?
PM: Os ex-presos políticos não foram bem tratados aqui. Muita gente, por consequências da prisão, morreu muito cedo, sobretudo com problemas intestinais. E nós fizemos muita pressão. Houve até da parte do Governo algum apoio, mas não de forma muito digna. Foram concedidas umas pensões no âmbito da luta contra a pobreza. Acho que não se deviam tratar assim os presos políticos, por aquilo que fizeram, por aquilo que passaram, por aquilo que trouxeram ao país, porque eles estão nos alicerces da formação deste país. Mas continuamos a batalhar.