"Prendia-se e matava-se e depois nem se explicava", diz o juiz Rui Rangel sobre o 27 de maio em Angola
No dia 27 de maio de 1977, a capital angolana Luanda acordou com manifestações populares a favor de Nito Alves, então ministro da Administração Interna e membro do Comité Central do MPLA, partido no Governo. Na altura, as manifestações foram classificadas pelo Presidente de Angola, Agostinho Neto, como uma tentativa de golpe de Estado, cujo objetivo era tomar o poder.
Nos dias e meses que se seguiram aos acontecimentos daquele dia, os apoiantes de Nito Alves, os chamados "fracionistas", são expulsos do MPLA. Milhares de pessoas são torturadas e assassinadas.
Rui Rangel, juiz desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa, foi em 1977 simpatizante do MPLA e uma das vítimas das perseguições.
DW África: O que aconteceu nesse dia 27 de maio de 1977?
Rui Rangel (RR): Estava em Luanda. Desempenhava funções na Rádio Nacional de Angola. Aquilo foi uma situação quase de guerra civil. Ali quase que não se sabia quem era o inimigo e de que lado é que estava o inimigo. Foi uma situação extraordinariamente complicada, de vingança, de barbaridades que foram cometidas, de violência física e de tortura. E, portanto, é um momento negro na página de Angola.
DW África: Saía da Rádio e foi detido, foi agredido?
RR: Sim, saía da Rádio, fui preso por indivíduos que se intitularam da DISA, que era o corpo da polícia política. A DISA naquela altura tinha um peso enorme, mas a DISA era tudo e não era nada. Quase que não se sabia quem eram os elementos da DISA, e designadamente que funções tinham. E evidentemente que fui vítima desse processo. Prenderam-me, bateram-me, partiram-me um braço, fraturaram-me quatro costelas.
DW África: E sabe porque é que foi perseguido?
RR: Por alguma identificação [com algumas pessoas]. Porque eu tinha algumas pessoas amigas de um lado e do outro. Não tomei nenhuma posição do ponto de vista político nessa matéria, mas, obviamente como aquilo foi uma sublevação…; isto é, uma coisa é a tomada do poder, outra coisa é quando não se sabe onde é que está o poder e porque é que se está a desencadear aquele processo.
Aquilo foi um processo quase de guerra civil, diria eu, em que já não é o opositor UNITA, já não é o opositor MPLA, e, portanto, é a caça às bruxas. No fundo aconteceu um pouco isso. O processo depois transforma-se e obviamente que há pessoas que são arrastadas por esse processo, meses depois.
Naturalmente que havia linhas de identificação. A razão pela qual fui preso foi invocada que eu estava também naquilo que tinha que ver com aqueles que preconizavam a revolta do lado da fação de Nito Alves, da Sita Valles, do lado mais radical da problemática do poder em Angola. Evidentemente que nesse exatíssimo contexto eu fui uma vítima que não tinha rigorosamente nada a ver com essa linha mais radical.
Eu tive trabalho para o MPLA na juventude, no Lubango. O programa "Angola Combatente" era feito nos estúdios do meu irmão, Emídio Rangel, e era feito por mim parte desse programa, mas isto já foi um processo a seguir e, portanto, a minha linha de identificação sempre foi com o MPLA.
DW África: Aquilo foi de facto uma tentativa de golpe de Estado atribuída aos chamados "fracionistas"?
RR: Pode-se considerar. Num conceito político e de ciência política pura e dura pode-se considerar que aquilo era de facto a alteração das regras de um Estado. Não enjeito essa designação de uma tentativa de golpe de Estado e de uma tentativa de se tomar o poder, digamos, por via das armas e não por via de um processo eleitoral normal.
DW África: Por acaso, ainda se lembra dos principais responsáveis pela tortura de que foi vítima?
RR: Não. Nem os conheço. Sei que havia a identificação como sendo da DISA. Evidentemente depois tentei apurar essa responsabilidade. Julgo que estariam ligados ao Ministério que de alguma forma tutelava a DISA e de um corpo de polícia também na altura, mas não tenho identificação das pessoas que me fizeram isso. Isso não tenho.
DW África: Depois teve de deixar Luanda?
RR: Meses depois deixei Luanda, naturalmente com essa tristeza.
DW África: Nem sequer lhe explicaram as razões desta perseguição?
RR: Não. Rigorosamente nada. Ali ninguém dava explicação. Ali prendia-se, batia-se e depois se houvesse necessidade explicava-se a seguir. Ou então prendia-se e matava-se e depois nem se explicava.
Evidentemente que também no quadro deste processo houve execuções que foram feitas, do meu ponto de vista, erradas, que mancham a história de Angola, que já está manchada com muitas outras coisas infelizmente. Porque mesmo esse tipo de cidadãos deviam ter direito a um julgamento e à apreciação das [respetivas] responsabilidades dentro de um Estado que estava numa situação de normalidade.
Quando se entra neste processo quase de golpe de Estado, quase de guerra civil, quase de tentativa de tomada de poder por via das armas, evidentemente que há sempre exageros. E a nossa História - não só a História de África, mas a História mundial - está cheia de erros que são cometidos. E, portanto, nem sequer isto é um processo singular de Angola. Talvez um processo singular apenas por existir pessoas que estiveram vários anos no mesmo caminho e depois há, de facto, uma fratura nesse pensamento e nesse caminho, mas nem sequer é um processo singular relativamente a Angola porque a História das civilizações estão recheadas de situações dessa natureza e naturalmente que os exageros depois cometem-se.
Depois, o problema é quando se normalizam o processo não se dá oportunidade dessas pessoas que foram detidas ter a possibilidade na normalização do processo de haver um julgamento justo em que se aprecie o quadro de responsabilidade. E isso não foi feito porque algumas destas pessoas que tiveram uma posição relevante foram executadas em estádios de futebol e noutros sítios sem sequer ter direito a um julgamento.
DW África: No seu caso, alguma vez recebeu ou exigiu uma ajuda ou recompensa como vítima?
RR: Não, rigorosamente. Fora de questão. Amo Angola. Note que sou angolano até à terceira geração. Os meus pais e avós nasceram em Angola.
DW África: Então, teve sorte?
RR: Posso considerar que tive sorte. Não me mataram por sorte. Não tinha chegado o meu dia, porque o processo era de loucura e de exageros tais que poderia muito bem este cenário ter ocorrido.
DW África: Foi um acontecimento trágico na História de Angola que ainda lhe marca?
RR: Se há história de Angola que precisa de ser contada como deve ser esta é uma delas. Esse é o período. É, de facto, dos momentos mais trágicos que aconteceu infelizmente em Angola.
Antes de Angola ser independente havia um referencial de quem era o inimigo. Portanto, era o país colonizador. Os que participaram no 27 de maio são companheiros de lutas de vários anos, são companheiros da mesma causa, da mesma luta política, irmãos que lutaram pela independência e todos eles com grande exemplaridade, e obviamente que eram irmãos a digladiarem-se. Ou seja, são pessoas da mesma posição ideológica, da mesma posição cultural, da mesma luta histórica pela libertação de Angola. E é evidente que num quadro absolutamente fratricida. Esse é o primeiro dado trágico, do meu ponto de vista.
O segundo elemento é o desmembramento político no quadro ideológico, numa concepção digamos de poder, uns mais radicais e outros menos radicais, mas alguns deles com um passado histórico relevantíssimo na libertação de Angola como Nito Alves.
E naturalmente que dói profundamente verificar que grandes companheiros de luta depois se digladiaram e obviamente que foi para mim um dos momentos mais trágicos de todo o processo da pacificação de Angola.
José Eduardo dos Santos tinha dirigido, na altura, a Comissão de Inquérito sobre o 27 de maio de 77. Seria importante conhecer o respetivo relatório?
RR: Pois, o relatório ninguém conhece. Isso é verdade. Era fundamental conhecer este documento porque isto faz parte da memória coletiva de Angola, faz parte da História de Angola e isso, evidentemente, é um elemento que era importante ser conhecido do ponto de vista público não só para fortalecer os alicerces do Estado, para tornar aquela sociedade mais transparente e de alguma forma para ser um elemento de memória coletiva e para que este tipo de erros não se venham a repetir.
Agora, eu entendo que independentemente dos problemas que existem no funcionamento do Estado, considero que o Presidente José Eduardo dos Santos é uma das pessoas que garantem a pacificação relativamente a Angola. Tenho algum receio no sucessor do Presidente José Eduardo dos Santos. Que isso não possa levar outra vez a uma luta fratricida e o princípio de guerra civil ou outra, porque a população angolana não pode continuar a sofrer mais.
Considera importante a criação de uma Comissão da Verdade, a exemplo do que aconteceu na África do Sul no tempo de Nelson Mandela?
RR: Sou juiz, a minha vida é sempre a busca da verdade. O pior que pode acontecer é esconder-se a verdade. E, portanto, se houver uma comissão isenta que faça um trabalho sério e responsável na busca da verdade para se explicar exatamente esse processo, que não está explicado - é um processo muito sofrido, muito magoado, com muita dor, com mortes, um processo que amachucou a alma angolana.
E, portanto, essa comissão se existir obviamente, e desde que ela trabalhe segundo esses critérios de verdade eu sou um adepto da verdade. E acho que a verdade é o traço de distinção daquilo que são os Estados civilizados.
Autor: João Carlos (Lisboa)
Edição: Johannes Beck