Vítima de racismo das bancadas, Marega abandona relvado
17 de fevereiro de 2020Rebentou a bolha! Moussa Marega deixou o futebol português de boca aberta quando, ao minuto 71 do jogo entre Vitória de Guimarães e FC Porto, pediu para ser substituído e abandonou o jogo devido a cânticos racistas provenientes de adeptos do clube minhoto.
O avançado maliano, de 28 anos, foi confortado pelos colegas de equipa e também adversários. Os colegas pediram para ele não abandonar o jogo, mas Marega não resistiu e deixou os autores dos cânticos racistas a falarem sozinhos.
Inédito
Aquele que estava a ser um jogo digno de dois grandes emblemas do futebol português virou um dos episódios mais tristes da história do desporto-rei em Portugal. Não há memória de um episódio semelhante no futebol do país.
Tudo começou no aquecimento antes do jogo, onde há relatos - confirmados pelo treinador do FC Porto, Sérgio Conceição - de insultos e ofensas racistas ao avançado que já atuou pelo Vitória de Guimarães em 2016/17.
Durante a partida, foi notório para quem acompanhava o jogo no estádio, no rádio ou na televisão, o ambiente hostil criado pelos adeptos do Vitória de Guimarães cada vez que Marega tocava na bola. Assobios e palavrões já são assumidos como atitudes "normais" num jogo de futebol, quando um jogador regressa ao estádio de uma equipa pela qual jogou.
No entanto, a bolha encheu até ao limite quando, aos 60 minutos, Marega marcou o 1-2 para os dragões. No festejo do golo, e num confronto emocional com os adeptos do Vitória de Guimarães, Marega apontou para o braço, fazendo alusão à cor da pele. De imediato, os adeptos da bancada central do estádio do Vitória de Guimarães responderam com insultos e alvejaram o jogador do Porto com cadeiras atiradas contra o maliano.
Coragem
Aos 71 minutos, o impensável aconteceu. Moussa Marega pediu para ser substituído e abandonar o jogo. De imediato, os colegas de equipa tentaram confortar Marega, pedindo ao avançado do FC Porto para permanecer em campo e mostrar aquilo que se chama de força mental. Até os próprios jogadores do Guimarães - adversários de ocasião, mas colegas de profissão - tentaram acalmar Marega, mas não surtiu efeito.
Ainda dentro do terreno, Marega apontou os dois dedos indicadores para baixo, num sinal de desaprovação daquilo que estava a acontecer. Passados alguns segundos, enquanto abandonava o jogo, em direção ao túnel, Marega não segurou os sentidos e a destreza em responder aos adeptos que o insultaram do início ao fim, mostrando os dois dedos do meio para o público. O árbitro da partida, Luís Godinho, não teve reação perante o que estava a acontecer, mantendo-se sereno a observar Marega abandonar o campo.
Reações
Mal terminou a partida no D. Afonso Henriques, multiplicaram-se os comentários em programas de televisão, rádio e redes sociais. Desde logo, salientar que as autoridades máximas do futebol português (Federação Portuguesa de Futebol e a Liga Portugal) repudiaram, publicamente, o sucedido em Guimarães, afirmando que os protagonistas iriam ser punidos pelos atos sucedidos.
Uma das reações mais esperadas foi da parte do Vitória de Guimarães. Primeiro pelo treinador, Ivo Vieira, que na conferência pós-match, afirmou não se ter apercebido dos cânticos racistas. No entanto, o técnico português mostrou-se defensor da punição severa das pessoas que contribuem para a discriminação no futebol e em todas as áreas sociais.
Já o presidente do Vitória de Guimarães, Miguel Pinto Lisboa, disse que iria sancionar o racismo, caso se confirme que aconteceu. Porém, o dirigente do clube minhoto criticou Marega, referindo-se a "um atleta que teve comportamentos provocatórios" para com alguns adeptos do Vitória de Guimarães no "festejo do segundo golo".
As reações fora do circuito do futebol também não tardaram. Da política, as duas máximas figuras do Estado português, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, repudiaram os atos sucedidos em Guimarães, com o primeiro-ministro português indo mais longe, referindo que Marega mostrou ser "um grande cidadão".
Eco internacional
O caso de Moussa Marega encheu as capas dos mais prestigiantes jornais que cobrem o futebol na Europa. Em Espanha, por exemplo, a edição online do jornal "Marca" refere que "o futebol português viveu um dos episódios mais tristes da história". Na mesma linha editorial, o jornal "As" descreve o caso como "vergonha mundial em Portugal, em pleno século XXI". Também em França se escreve sobre Marega. O prestigiado "L´Equipe" notícia o incidente, tal como o jornal italiano, "La Gazzetta dello Sport", que fala num "escândalo em Portugal".
FIFA
A FIFA, orgão que tutela o futebol mundial, é muito clara no Artigo 3 do seu estatuto:
"A discriminação de qualquer tipo contra um país, pessoa ou grupos de pessoas, por causa da raça, cor da pele, etnia, origem social, género, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, saúde, local de nascimento ou qualquer estatuto, orientação sexual ou qualquer outra razão, é estritamente proibida e passível de punição por suspensão ou expulsão".
Em 2013, o Código Disciplinar da FIFA (FDC, na sigla em inglês) aprovou uma nova resolução para combater o racismo no futebol:
- Os organizadores da competição em curso devem estabelecer um plano de ação, mostrando a sua intenção de combater todas as formas de racismo e discriminação entre os seus jogadores, oficiais e adeptos.
- O regulamento da competição deve prever um delegado da liga local para estar no estádio para identificar potenciais atos de racismo ou discriminação, com o objectivo de aliviar a pressão sobre os árbitros e facilitar a disponibilidade de provas para que os órgãos judiciais tomem decisões.
- As sanções previstas no FDC, que são obrigatórias para todas as associações-membros de acordo com a FDC, oferecem aos órgãos judiciais competentes a discrição necessária ao decidir sobre casos específicos de má-conduta do apoiante. No entanto, a fim de harmonizar as sanções pronunciadas a nível mundial, as sanções impostas a um clube ou equipa de representantes devem, em princípio, ser emitidas em duas fases:
- Para uma primeira ou uma infração menor, um aviso, uma multa e/ou o jogo a portas fechadas devem ser aplicadas.
- Para os reincidentes ou para incidentes graves, serão aplicadas sanções tais como deduções pontuais, expulsão de uma competição ou despromoção deve ser aplicada. Além disso, qualquer pessoa (jogador, árbitro, oficial do jogo, etc.) que comete tal infração será suspensa pelo menos cinco jogos, juntamente com uma proibição de entrada no estádio.
Racismo no futebol
Moussa Marega foi vítima do primeiro caso mais mediático de racismo no futebol porrtuguês. No entanto, a discriminação racial já se arrasta há vários anos no futebol internacional.
Em 2014, a justiça brasileira condenou o Grémio de Porto Alegre à exclusão da Taça do Brasil devido a insultos racistas proferidos por adeptos contra um jogador adversário durante um jogo da competição, um “caso único no futebol internacional”. O clube foi “eliminado” da Taça do Brasil devido a insultos racistas proferidos contra o guarda-redes do Santos, Mário Costa, conhecido por “Aranha”, durante um jogo realizado entre as duas equipas a 28 de Agosto desse mesmo ano.
Em 2017, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) condenou o Rio Ave ao pagamento de 536 euros de multa pelos cânticos racistas proferidos pelos seus adeptos contra Renato Sanches, que na altura representava o Benfica.
Em Outubro de 2019, a Bulgária foi punida com um jogo à porta fechada pelos cânticos racistas e saudações nazis na receção à Inglaterra, a cumprir na qualificação para o Euro 2020 de futebol. O Comité Disciplinar da UEFA acrescentou ao castigo um jogo com pena suspensa e aplicou à federação búlgara uma multa de 85.000 euros.
O jogo entre as selecções da Bulgária e de Inglaterra, a 14 de Outubro, foi interrompido pelo árbitro na sequência de insultos racistas provenientes das bancadas contra alguns jogadores ingleses negros, tendo Tyrone Mings, Marcus Rashford e Raheem Sterling sido dos mais visados.
Seguindo os regulamentos da UEFA, o árbitro fez um anúncio através do sistema sonoro do estádio, exigindo aos adeptos que parassem com o comportamento racista, numa altura em que estavam decorridos cerca de 30 minutos, tendo ainda uma longa conversa com os dirigentes das duas selecções no final primeiro tempo.
Ainda antes do jogo, vários jogadores da selecção inglesa falaram entre si sobre que decisão adoptar caso ocorressem insultos racistas, tendo alguns, como o avançado do Chelsea Tammy Abraham, chegado a sugerir o abandono do jogo, mesmo não estando previsto no protocolo da UEFA.