“Recolhíamos as crianças do combate para a retaguarda”
29 de setembro de 2012Em 2000, Raul Domingos fundou o seu próprio partido, o Partido para a Paz, Democracia e Desenvolvimento. Mas antes disso, o político moçambicano foi líder da bancada parlamentar do maior partido da oposição de Moçambique, a Resistência Nacional Moçambicana, e chegou a ser visto como possível sucessor de Afonso Dhlakama na liderança da RENAMO. Foi com Raul Domingos que Dhlakama assinou, pelo lado do grupo rebelde, o Acordo Geral de Paz em Roma a 4 de outubro de 1992.
O Acordo pôs fim a 16 anos de confrontos entre FRELIMO e RENAMO numa guerra que, para Raul Domingos, foi uma guerra civil e não de desestabilização. Prova disso, diz ele, foram os resultados das primeiras eleições multipartidárias do país, realizadas em 1994: estes “mostraram que o povo votou massivamente a favor da RENAMO”.
A expressão ‘guerra de desestabilização’ não faz sentido para Domingos, uma vez que “pretende transmitir que foram os regimes do apartheid, na África do Sul, e de Ian Smith, na Rodésia, atual Zimbabué, que fizeram a guerra”. Mas a guerra “teve a participação do povo”, diz Domingos. A adesão à RENAMO no centro do país, a região mais afetada pelo conflito que se arrastou por 16 anos, foi para o político moçambicano uma “demonstração clara de que se tratava de uma luta justa por uma causa justa, uma causa com que o povo se identificava”.
Marta Barroso falou com Raul Domingos sobre a guerra civil e os 20 anos de paz em Moçambique.
DW África: Qual era a causa da RENAMO?
Raul Domingos (RD): A RENAMO lutava para se estabelecer no país uma democracia multipartidária, na qual os direitos humanos fossem respeitados de acordo com a Carta dos Direitos Humanos universal, em que as liberdades fundamentais fossem observadas, em que a justiça fosse aquilo que todos deviam preservar.
DW África: Se fazia parte da causa da RENAMO a defesa dos direitos humanos, como se pode explicar o envolvimento de crianças-soldado?
RD: Esse é um fenómeno que precisa de ser estudado. O envolvimento de crianças não faz parte da estratégia da guerrilha em si, mas é uma consequência da situação da luta, em que as crianças, num determinado momento, e numa determinada situação, não estão nas escolas nem estão com as famílias, mas estão envolvidas num fogo cruzado. Neste fogo cruzado, vão cair para um lado ou para o outro e para aqueles que estão do lado da guerrilha, acabam ficando sujeitos a uma situação de ter de acompanhar, nas zonas de guerra, o movimento que se está a desenrolar. E muitas dessas crianças ficavam com os comandantes e era para proteção delas.
Agora, aquelas que estivessem nas zonas de combate, mas que tivessem uma capacidade física para serem portadoras de uma arma para sua auto defesa, eram criadas essas condições, justamente porque não havia outra alternativa. Era para o bem delas próprias. Crianças que não eram avaliadas pela idade, mas pela capacidade física.
Mas recordo-me de que fazia parte do nosso programa recolher todas as crianças que estivessem na frente de combate para a retaguarda por forma a protegê-las da situação de conflito.
DW África: Há quem diga que a guerra civil só foi possível, porque outros países interferiram e financiaram os dois lados. Concorda?
RD: A razão da guerra, para mim, é o Estado em que nós nos encontrávamos: de opressão. Na busca da liberdade, o único recurso que restava era pegar em armas, porque qualquer tentativa de reivindicar, a resposta era prisão e morte. Acabávamos de sair de uma guerra contra o colonialismo, com sucesso, por via de armas, foi quase automático pensar-se que o monopartidarismo, as políticas de Marxismo-Leninismo que estavam sendo impostas só podiam ser repelidas através das armas. Agora, é verdade que nenhuma das partes fabricava armas. Era preciso encontrar armas de qualquer forma: uns foram buscá-las na Rússia e na China e outros foram buscá-las na Rodésia e na África do Sul.
DW África: Qual era a estratégia da RENAMO?
RD: Hoje está claro que a estratégia da RENAMO era uma estratégia de guerrilha, usando pequenos grupos e atacando a logística do adversário – ou do inimigo, na altura era o inimigo – para o enfraquecer. Tendo sempre presente que “um guerrilheiro é como um peixe na água” como dizia Mao Tse Tung: nós tínhamos de estar bem com a população para nos podermos mover e ter todas as informações nas matas e definir bem o alvo a atacar: as forças inimigas e as infra estruturas económicas que sustentavam este poder.
DW África: Disse que a RENAMO tinha de estar bem com a população local, maioritariamente rural. No entanto, a RENAMO chegou a pilhar aldeias, mutilar pessoas. Não é um paradoxo?
RD: Não. Apenas uma desinformação. A informação foi bem utilizada pelo inimigo – permita-me dizer inimigo, naquele tempo – para se manter. Porque, na verdade, a população estava de facto com a guerrilha.
E justamente por isso, depois de se registarem grandes avanços, com uma cobertura quase total do país, o nosso adversário e inimigo acabou adotando uma tática de anti insurgência: criar grupos pequenos que se faziam passar por guerrilheiros que conviviam com a população e conseguiam ver a simpatia que a população tinha para com a força da guerrilha e depois revoltavam-se contra a mesma população e massacravam aquela população. Era uma forma de criar hostilidade da população para com a guerrilha. Mas a população conseguiu perceber que estava a ser enganada.
DW África: Como disse, os alvos da RENAMO eram alvos estratégicos. Qual foi o objetivo da RENAMO ao atacar postes de transmissão de eletricidade da barragem de Cahora Bassa nos anos 1980?
RD: Isso chamou a atenção da comunidade internacional em geral e em particular a Portugal – que era um dos grandes acionistas de Cahora Bassa – de que em Moçambique havia uma guerra civil e não de bandidos armados que não tinham objetivos políticos a atingir, mas que alguma coisa estava a acontecer de que era preciso ter melhor informação.
DW África: Como é que em 1992 o Acordo de Roma resultou e a paz foi alcançada ao fim de 16 anos de confrontos e de tentativas falhadas como o Acordo de Nkomati, assinado em 1984?
RD: Olhando para aquilo que foi o desenho do Acordo de Nkomati, assemelha-se a alguém que dispara para um alvo errado. A conceção do Acordo de Nkomati era que a guerrilha era um instrumento do apartheid, portanto vamos acordar com o apartheid para deixar de apoiar a guerrilha e a guerrilha vai desaparecer. Mas a realidade não era essa: a guerrilha era o resultado da revolta popular e do sentimento de todo um povo que estava em busca da liberdade. Só quando esses aspetos foram tomados em conta, no Acordo de Roma, a guerra terminou.
DW África: Já lá vão 20 anos desde o 4 de outubro de 1992. À distância, acha que a guerra civil fez sentido?
RD: Foi necessária. Foi necessária. Porque eventualmente se não tivéssemos a guerra civil, nao teríamos o Estado que temos hoje. Teríamos eventualmente, com o fim da Guerra Fria, o derrube do Muro de Berlim, com o fim da União Soviética, algumas mudanças, mas que eventualmente não trariam esse xadrez político que hoje vemos no país. Portanto, foi um mal necessário.
DW África: Em Cabo Verde, por exemplo, quando acabou o regime de partido único e houve uma abertura a partidos de oposição, também se verificou uma alternância de partidos no poder. Em Moçambique isto não tem acontecido nestes 20 anos de paz. Aliás, desde a independência do país em 1975, um só partido governa o país. Como explica esta situação?
RD: Alguns erros da parte da oposição permitiram que o governo da FRELIMO continuasse a governar sozinho e esses erros foram de tal ordem graves que começaram a desagregar a própria oposição e oxalá que a oposição se dê conta de que precisa de encontrar uma plataforma de entendimento que permita a conjugação de esforços para evitar a dispersão de votos de modo a que a alternância de poder se torne uma realidade no país.
DW África: Que erros foram esses que a oposição cometeu e que permitiram o enfraquecimento da própria oposição e o fortalecimento do partido no poder, a FRELIMO?
RD: Por exemplo, a decisão da minha expulsão da RENAMO não tinha muito cabimento: estávamos perante uma declaração do nosso adversário político que foi tomada pela direção da RENAMO como verdadeira e, com base nela, decidir a expulsão de um quadro, que criou um descontentamento de tal ordem que enfraqueceu a RENAMO.
DW África: Acha que há erros cometidos no passado que se podem evitar para o futuro?
RD: Creio que sim. Aliás, todos nós sabemos qual é a receita. Os discursos apontam nesse sentido. Mas a prática é totalmente contrária. Porque é que as oportunidades de negócio aparecem sempre às mesmas pessoas? Porque os outros não têm vocação para o negócio? Antes pelo contrário.
DW África: Quais são os erros?
RD: Os erros são deliberadamente uma posição de exclusão. É um comportamento que se está a assumir que põe em risco a estabilidade política, económica e social do país: de não assegurar a igualdade de oportunidades.
DW África: E qual é a receita para o futuro?
RD: A receita seria naturalmente, sem preconceitos, sem olhar para cores partidárias, que as oportunidades fossem postas à mesa, à luz do dia, e as pessoas pudessem concorrer a conscursos públicos e ter acesso aos negócios que o país tem como oportunidades.
DW África: Qual é o seu balanço geral dos 20 anos de paz em Moçambique?
RD: Felizmente conseguimos manter o calar das armas, conseguimos atrair investimentos na área dos megaprojetos e isso permite olhar para o país com alguma esperança. Por um lado. Por outro, estes megaprojetos, este crescimento económico ainda não foi capaz de se refletir no bolso do cidadão. Erros de estratégia que, na minha opinião, deveriam privilegiar a criação de médias e pequenas empresas, a criação de uma classe média que pudesse fazer esta ponte necessária entre as classes desfavorecidas e as classes mais endinheiradas.
Autora: Marta Barroso
Edição: António Rocha