Angola: ONG denuncia polícia brutal no estado de emergência
25 de agosto de 2020A 4 de julho, Clinton Dongala Carlos, de 16 anos, foi alvejado nas costas pela polícia quando regressava da casa da tia, no município de Cacuaco, província de Luanda. Depois dos agentes lhe despejarem água no rosto, o adolescente ferido levou um segundo tiro, desta vez mortal, na cara.
Segundo testemunhas, Carlos foi perseguido por um grupo de agentes das forças de segurança, dois das Forças Armadas Angolanas (FAA) e três da Polícia Nacional de Angola (PNA).
Este é apenas um de sete casos de adolescentes e jovens mortos pelas forças de segurança angolanas, entre maio e julho, identificados e registados numa investigação da Amnistia Internacional e da organização angolana de direitos humanos OMUNGA, através de entrevistas com amigos e familiares das vítimas, bem como com testemunhas oculares.
Segundo o relatório da investigação, publicado nesta terça-feira (25.08), as vítimas eram todos rapazes e homens jovens - o mais novo tinha apenas 14 anos de idade. Todos os assassinatos ocorreram em bairros mais pobres. As organizações acreditam que o verdadeiro número de mortos será provavelmente muito mais elevado.
O relatório afirma que as equipas de segurança angolanas têm utilizado força excessiva e ilegal quando lidam com violações dos regulamentos do estado de emergência impostos para controlar a propagação da Covid-19.
João Malavindele, director Executivo da OMUNGA, defende que "as autoridades angolanas devem assegurar que a investigação em curso seja rápida, independente e imparcial. Os agentes estatais suspeitos de serem responsáveis por violações e abusos dos direitos humanos devem ser responsabilizados e às famílias deve ser concedida justiça, verdade e reparação."
À DW África, Malavindele defendeu que a Polícia angolana precisa de uma reforma.
DW África: Já dirigiram os apelos às autoridades?
João Malavindele (JM): De certa forma é o que nós temos estado a divulgar ao longo deste período de estado de emergência e agora estado de calamidade. Até agora fomos fazendo nota pública, denunciando essas práticas, mas estamos agora em vias de formalizar processos. Um dos estágios está no tribunal, o caso do miúdo [de 14 anos] que foi morto na província de Benguela. Para além da responsabilidade criminal, estamos a exigir também a responsabilização social. E pretendemos fazer isso também com o resto dos casos que nós temos documentados. O que nós exigimos nesse momento é isso, a responsabilização por parte de quem, em nome do Estado, foi perpetrando esse tipo de crime.
DW África: Face às vossas denúncias, tem notado alguma tendência de redução de violência por parte da polícia contra os cidadãos?
JM: Alguns discursos meio musculados contribuíram muito para que a polícia, na sua atuação, desrespeitasse os direitos e os deveres dos cidadãos. Ou seja, a dada altura, as próprias forças de segurança pensaram que o estado de emergência substituía o estado de direito. E nessa fase registou-se muita violência policial porque os próprios polícias não percebiam e estavam carentes daquilo que se pretendia de concreto com a própria pandemia. Faltou alguma informação. Por outro lado, também é a interpretação do próprio decreto. Hoje, embora continuem nessa tendência [de violência policial], já não há tanto assim com há dois ou três meses,
DW África: Durante o consolado de José Eduardo dos Santos, a polícia era considerada bastante repressiva e abusiva. Esta prática não está a ser eliminada no Governo de João Lourenço?
JM: Se está a ser eliminada não está a ser bem eliminada. [Segundo] as estatísticas no começo da pandemia, a dada altura a polícia fez mais vítimas que a própria pandemia. Agora, acho que as pessoas também vão amadurecendo, vão entendendo as novas estratégias e as novas políticas do atual efetivo. Mas, ainda assim, sentimos esse lado de repressão por parte das forças de segurança. E nessa fase de João Lourenço há sinais do combate à impunidade. Então, isso também tem estado a persuadir algumas pessoas que estão nesse lado de manter essa paz e essa ordem social no sentido de estarem cada vez mais cautelosos quando estiverem no exercício da sua função. Mas as coisas continuam.
DW África: Então é caso para dizer que a polícia de Angola precisa, com alguma urgência, de uma verdadeira reforma?
JM: Claro. Precisamos de uma reforma. Hoje, ao dialogar com um polícia sobre uma situação qualquer, corre-se o risco de em menos de 24 horas ir-se parar ao tribunal porque se desautorizou uma ordem qualquer. E o polícia basta fazer um auto de notícia, que só ele é que sabe o que está lá escrito, envia para o tribunal e o cidadão é logo condenado a pagar multa. Ou seja, nesta fase há uma espécie de carta-branca para as forças de segurança. Porque aqui não se privilegia o diálogo com o cidadão, que à mínima coisa é logo levado para a esquadra e passa por um julgamento sumário e pronto.