Ruanda: Filhos de vítimas continuam esquecidos
27 de agosto de 2017Durante o genocídio de 1994, no Ruanda, entre 250 mil e 500 mil mulheres foram violadas, dizem as estimativas. Milhares de crianças nasceram dessa violência, mas ninguém sabe exatamente quantas. "A violação ainda é um assunto tabu por aqui", explica Samuel Munderere, da organização Survivors Fund (SURF) ou Fundo de Sobreviventes, que apoia vítimas de violação.
"As mulheres não falam sobre a violência que sofreram e a gravidez apenas lhes aumenta a vergonha", diz Munderere. Enquanto isso, os filhos das vítimas cresceram numa sociedade que os encara como "filhos de assassinos", em vez de vítimas.
Vítimas esquecidas
Na sua pequena casa em Kiyovu, um bairro pobre da capital de Kigali, Annonciata recorda 1994 em lágrimas. Toda a sua família foi assassinada e ela sofreu nas mãos das tropas. "Não sei quantos me violaram", diz.
Durante três meses, Annonciata foi violada todos os dias e, quando foi finalmente resgatada pela Frente Patriótica Ruandesa (FPR), soube que era seropositiva e que estava grávida. "Quando vi o meu filho pela primeira vez, não consegui parar de chorar."
Agora, o seu filho Paulin tem 22 anos. Em criança, costumava perguntar a Annonciata pelo pai, mas ela evitava o assunto. Paulin também prefere não falar sobre o passado da mãe e não o contou aos amigos, por receio de ser gozado. "Eu apenas finjo que nada aconteceu", afirma.
Mulheres como Annonciata têm pouca assistência familiar e criam os filhos em ambientes de pobreza. Muitas tentam abortar ou matar os filhos, por estes lhes fazerem recordar a violência sofrida.
Já os filhos sofrem preconceitos da sociedade patriarcal. As crianças são conhecidas como as "vítimas esquecidas". Como muitas delas nasceram depois de 1994, não recebem apoio do Governo por não serem consideradas vítimas do genocídio. Na tentativa de preencher a lacuna, a SURF fornece serviços de apoio psicológico e de ajuda a pequenas empresas.
Relação complicada entre mães e filhos
Eugenie conheceu Annonciata no grupo de apoio. No início do conflito, em 1994, o seu marido foi morto, pelo que ela se refugiou numa escola, pois as milícias Hutu começaram a exercer violência sobre a população tutsi. "Amarraram-me os braços e as pernas, taparam-me os olhos e violaram-me", lembra Eugenie, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.
Meses depois, Eugenie descobriu que estava grávida. Temia que o bebé fosse parecido com o violador, mas na primavera de 1995, Eugenie deu à luz Jean-Baptiste. "Ele era parecido comigo", diz, lembrando o sentimento de alívio.
Apesar disso, apenas anos mais tarde contou a Jean-Baptiste a verdade. "Eu estava sempre chateado com ela", admite Jean-Baptiste, de 22 anos. "Agora entendo o quão difícil deve ter sido [para ela]".
Ser filho ilegítimo
Também Nádia foi violada várias vezes durante o genocídio. "Quando penso nisso, é como se voltasse a sentir a dor". Recorda que os seus pais assistiram à violação mas não fizeram nada. "Nunca mais consegui olhar a minha mãe e o meu pai nos olhos".
Nove meses depois, nasceu Asimine. Uma filha que lhe fazia recordar o passado e, apesar de os seus pais terem sobrevivido aos assassinatos, eles recusaram-se aceitar a sua filha. "Eles vêem Asimine como uma criança ilegítima, apesar de me terem visto a ser violada".
Asimine cresce sem o pai. "Todos os meus colegas têm um pai e eu não, então eles gozavam comigo", lembra Asimine enquanto olha para o chão.
Feridas por sarar
Apesar de traumatizadas e do ambiente de pobreza, as mulheres violadas durante o genocídio do Ruanda lutaram para criar crianças saudáveis. Paulin pretende terminar os seus estudos em tecnologia informática. "E, claro, espero ter netos em algum momento", acrescenta Annonciata com um sorriso.
Eugenie também se orgulha do seu filho, que sonha ter a sua própria fazenda de porcos. No entanto, longe, nas colinas, Nádia é menos otimista. Está feliz por ter um neto, mas preferia que Asimine tivesse um emprego. Ainda assim, agradece a ajuda que o Survivors Fund lhe deu: uma vaca, que lhe permite sustentar a pequena família graças às vendas de leite.
Como diz Paulin, "as feridas vão curar, passo a passo". Mas ainda há um longo caminho a percorrer.