“Sempre que os militares guineenses se sentem ameaçados, avançam com golpes de Estado”
20 de abril de 2012Tendo em conta os recentes desenvolvimentos na Guiné-Bissau, a DW África falou com o constitucionalista Wladimir Brito, considerado o "pai" da Constituição de Cabo Verde.
Wladimir Brito, de nacionalidade cabo-verdiana e portuguesa, é professor de Direito nas Universidades de Coimbra e do Minho, em Portugal.
DW África: Tendo em conta os recentes acontecimentos como as nomeações do Comando Militar guineense para a Presidência da República e o Conselho Nacional de Transição, enquanto constitucionalista, considera que se vive alguma ordem constitucional no país?
Wladimir Brito (WB): Não se vive ordem constitucional neste momento. Estamos num estado de exceção, exatamente porque a ordem constitucional foi interrompida com o golpe de Estado. E a partir daí, portanto, a Constituição não está a ser respeitada e há uma violação clara de todas as normas constitucionais.
DW África: Este não é o primeiro golpe de Estado na Guiné-Bissau, que já viveu episódios de instabilidade diversas vezes. Porque é que o país vive, tantas vezes, fora da ordem constitucional?
WB: A Guiné-Bissau não conseguiu fazer uma desmobilização militar em condições e programada, desde a independência até agora. E portanto os militares continuam, digamos, a controlar o poder político.
Por outro lado, os golpes de Estado decorrem do facto de o Estado e as Forças Armadas serem, digamos, uma fonte de rendimento individual. E os vários militares e as personalidades que estão ligadas às Forças Armadas sempre que sentem ameaçados os seus privilégios (essa possibilidade de terem rendimentos) reagem violentamente contra a ordem constitucional.
Portanto, penso que o problema que está aqui é um problema de desmobilização dos militares, uma programação dessa desmobilização que não foi feita corretamente durante vários anos e, ao mesmo tempo que o país se afundava economicamente, as fontes de rendimento ficaram limitadas à função militar e à função política.
E, portanto, os militares sempre que se sentem ameaçados, enfim, avançam com golpes de Estado, de modo a salvaguardar as suas prerrogativas e a manter sob controlo o poder político.
DW África: Pensa que o envio de uma força multinacional é o único meio, neste momento, para o restabelecimento da ordem constitucional?
WB: O único meio não será. Entendo que, previamente, deverá haver uma ação diplomática muito determinada, uma diplomacia musculada digamos, de forma a convencer os militares a voltarem aos quartéis e a reporem a ordem constitucional.
Falhando esta diplomacia, é evidente que a única solução que resta é a da intervenção militar através de uma força da CEDEAO [Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental], da União Africana, sob o mandato da ONU [Organização das Nações Unidas].
DW África: Parece que a desordem que se vive no país, neste momento, é no fundo um braço de ferro entre duas partes: de um lado o Comando Militar, com o recente acordo da oposição; e do outro, o PAIGC [Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde], que estava no poder até ao golpe de Estado, ou pelo menos de uma fação do partido. Teme a evolução para um cenário de violência?
WB: Não. Eu penso que a violência na Guiné tem sido feita institucionalmente. Ou seja, têm sido as Forças Armadas que geram a violência na Guiné. A população tem sido muito serena, muito calma.
A questão que se coloca não é um confronto entre o PAIGC e os militares, mas sim fações dentro do PAIGC, os militares e alguns partidos políticos que se aproveitam dos conflitos que há dentro do PAIGC também para levar os militares a agirem dessa forma. É uma componente muito mais complexa do que à primeira vista parece.
Querem reduzir a questão entre o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, e os militares. Mas em bom rigor, a questão envolve fações do PAIGC e partidos políticos fora do PAIGC.
DW África: O Comando Militar fala num período de transição democrática de dois anos. Na sua opinião, é plausível que a Guiné-Bissau vá viver esse período? E, nesse possível cenário, poderá haver ordem constitucional?
WB: A ordem constitucional não poderá haver, durante esses dois anos, porque a ordem constitucional foi violada agora com o golpe de Estado. E o período de transição democrática vai depender muito dos conflitos que poderão emergir com a execução do plano ou do acordo feito entre militares e alguns políticos. Isto é, é muito provável, como já começou a acontecer que alguns políticos não aceitem o acordo. E, portanto, os militares continuarão a tutelar todo o processo, o que poderá gerar novos conflitos entre algumas forças da sociedade civil e os militares.
Autora: Glória Sousa
Edição: António Rocha