"Intenção de Patrice Trovoada é ser Presidente" diz analista
30 de setembro de 2024O primeiro-ministro são-tomense, Patrice Trovoada, afirmou há dias que "a Constituição da República tem que ser reformada". O também líder da Acão Democrática Independente (ADI) disse que o partido que sustenta o Governo no Parlamento vai avançar com a revisão da Constituição da República para clarificar aquilo a que chama de "zonas de confusão".
Patrice Trovoada admitiu propor a mudança para o regime presidencialista antes das eleições gerais de 2026, como forma de melhorar as instituições do arquipélago africano, situado no golfo da Guiné, tendo assegurado que vai abordar a questão da revisão com a Comissão Política da ADI, partido no poder desde 2022.
Trovoada lançou o repto numa mensagem de vídeo divulgada no Facebook, enquanto presidente da ADI, por ocasião dos dois anos das eleições legislativas realizadas em 25 de setembro de 2022 e ganhas pelo seu partido.
O analista são-tomense Liberato Moniz diz que "não faz sentido nenhum" a proposta de Patrice Trovoada, a pensar nas eleições gerais de 2026. Moniz considera que a principal intenção do primeiro-ministro, "talvez um dos seus sonhos", é ser Presidente da República e com isso reforçar o seu poder no xadrez político são-tomense. Para o analista, a democracia está em estado de degradação em São Tomé e Príncipe.
DW África: Patrice Trovoada quer mudar a Constituição para o regime presidencialista devido ao que chama de "zonas de confusão" na lei fundamental. Poderá fazê-lo?
Liberato Moniz (LM): Não. Julgo que ele não pode. Ele terá que o fazer dentro daquilo que diz a Constituição. Desde que ele respeite a regra da Constituição, que seja uma decisão de uma bancada parlamentar em que tenha depois a maioria que suporte esta revisão, claro que está, que essa revisão será sempre bem-vinda.
DW África: Patrice Trovoada disse que vai levar o assunto à comissão política do seu partido.
LM: Só a Comissão Política do seu partido pode ter iniciativa, mas não tem capacidade de, só por si, fazer a revisão constitucional. Mas o que eu entendo também é que a base que o atual primeiro-ministro e o líder da ADI usa para dizer que quer rever a Constituição não faz sentido nenhum. Primeiramente, se há alguém que tem nos últimos dois anos usurpado, digamos assim, praticamente todos os poderes em São Tomé e Príncipe – e tem todas as condições para fazer tudo o que quer nesse momento em São Tomé e Príncipe – é precisamente esse primeiro-ministro.
Tem o Tribunal Constitucional praticamente do seu lado, tem a Assembleia do seu lado, tem um Presidente da República que continua totalmente inoperante, o primeiro-ministro pode fazer aquilo que melhor entender. Então, as zonas cinzentas, se neste momento existem, são criadas por ele próprio, por interferência nos outros órgãos de soberania, o que não devia de maneira nenhuma acontecer num Estado de direito.
Porque, no meu entender, se for para mudar a Constituição para o presidencialismo, para satisfazer a necessidade do atual primeiro-ministro ou de qualquer uma outra pessoa em particular, não faz sentido. A necessidade de revisão constitucional é no sentido de encontrar os melhores mecanismos que possam, efetivamente, satisfazer as necessidades de São Tomé e Príncipe e de toda a população.
DW África: Esta não é uma ideia nova. Já houve no passado propostas desta natureza. Quais são as reais intenções da proposta de Patrice Trovoada?
LM: Eu entendo que a maior intenção do atual primeiro-ministro é ele pôr em prática talvez um dos seus maiores sonhos, que é ser Presidente da República e ter todo o poder à sua volta. Eu entendo que o primeiro-ministro Patrice Trovoada, desde a primeira hora que se tornou dirigente em São Tomé e Príncipe, não tem conseguido conviver com o contraditório. Diz que promove o contraditório, mas publicamente não se vê. Ele não fala com os partidos da oposição praticamente em todos os seus mandatos. Durante o seu mandato, os seus ministros fazem praticamente figuras de "verbo encher", como se diz em São Tomé e Príncipe, porque nenhum deles se sobressai quando são pessoas com muita competência.
DW África: Acha que esta proposta encontrará espaço de materialização de acordo com a lei fundamental são-tomense? Para clarificar, o que diz a Constituição sobre esta matéria?
LM: A Constituição diz que para fazer a revisão constitucional tem que partir da iniciativa dos deputados. Os deputados têm essa iniciativa e eles vão buscar o suporte depois às outras bancadas. Se isto acontecer, então está tudo normal, faz-se essa revisão constitucional. Mas não é preciso que ele peça. É preciso que o país sinta essa necessidade e porque os deputados são representantes da população, então é preciso que eles sintam essa necessidade. E se o próprio primeiro-ministro ainda não falou com a sua Comissão Política, ainda não tem o suporte do seu partido, quer dizer então que é um pensamento praticamente dele, é uma intenção praticamente dele, que eu julgo que a maioria da sociedade civil não entende.
DW África: De acordo com a posição que a Ação Democrática Independente (ADI) – partido que suporta Patrice Trovoada no Parlamento –, pode-se considerar que o primeiro-ministro dispõe já à partida de uma base de maioria suficiente para mudar a Constituição?
LM: Tem uma base para propor, mas não tem uma base para mudar a Constituição.
DW África: Tomando como indicador esta proposta de mudança de regime constitucional, que avaliação faz do atual estado da Democracia em São Tomé e Príncipe?
LM: Eu acho que, neste momento, as pessoas talvez comecem a ter saudades da Primeira República. Porque as pessoas em quem nós confiamos, as pessoas que o Estado são-tomense financiou para estudarem, para promover o contraditório, para fazerem o melhor para São Tomé e Príncipe verdadeiramente nos têm dececionado em toda a dimensão.
Em termos concretos, eu julgo que nós estamos hoje a viver de um abismo quase total, onde vemos a fuga desenfreada de praticamente toda a gente, quer sejam mais novos, quer sejam mais velhos, onde a esperança não impera neste momento em São Tomé e Príncipe, onde se começa a fazer uma coisa que é grave, que é a promoção de pessoas que não têm competência nenhuma, em detrimento de pessoas que pudessem trazer mais valias, simplesmente para manter as pessoas refém de quem está no poder, e claro está, e está-se a consolidar cada vez mais quem em São Tomé e Príncipe só chega ao poder, quem tem condições financeiras, e essas pessoas que têm condições financeiras têm chegado ao poder para mandar, porque acham que são todo-poderosos e não respeitam aquilo que é sacrossanto, que são as instituições e particularmente os tribunais. Têm feito os tribunais de refém, não permitindo que haja, efetivamente, um estado de direito democrático em São Tomé e Príncipe.
DW África: Portanto, na sua opinião a democracia está fragilizada?
LM: Eu não sei se está fragilizado. Sei que está em degradação total, ou seja, porque a esperança da democracia era que a vida melhorasse, era que as pessoas fizessem o seu melhor, era que as pessoas respeitassem uns aos outros, era que os órgãos de soberania pudessem funcionar, era que as instituições pudessem funcionar, mas sobretudo era preciso que respeitasse as pessoas e que se trabalhasse para as pessoas. E tal não acontece em São Tomé e Príncipe. Pelo contrário, sacrificam-se as pessoas em interesse próprio de um grupo pequeno, que, esse sim, no meu entender, tomou a independência, vive a democracia e fazem do país simplesmente aquilo que querem. E eu acho que é aí onde está o grande mal.