Tcheka: "O guineense acreditou estar prestes a uma mudança"
16 de novembro de 2020O escritor guineense Tony Tcheka lançou o livro "Quando os Cravos Vermelhos Cruzam o Geba" em Lisboa. Em conversa com a DW África na capital portuguesa, o jornalista criticou o que classificou como "comportamento ditatorial” do Presidente Umaro Sissoco Embaló. O jornalista e analista político lamenta desmandos e excessos do Presidente da Guiné-Bissau, que, segundo ele, fazem desacreditar o país, qualificado por muitos académicos e intelectuais como "Estado falhado".
A sua mais nova obra é constituída de contos romanceados que debatem o Estado-Nação. Nesta entrevista, o analista opina sobre o contexto político guineense e salienta que, na sua perspetiva, o atual Presidente da República da Guiné-Bissau não cumpre as regras de um Estado democrático, viola a Constituição e não respeita o primeiro-ministro Nuno Nabiam.
DW África: Depois das últimas eleições legislativas e presidenciais na Guiné-Bissau, foram vários os episódios que se sucederam até o afastamento de Domingos Simões Pereira, líder do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) - que concorreu na segunda volta contra Umaro Sissoco Embaló, o atual chefe de Estado. Que considerações faz hoje do contexto político no país?
Tony Tcheka (TT): Gostaria de dizer que depois das eleições legislativas, o guineense acreditou que nós estávamos às vésperas de uma mudança profunda, que iria recolocar a Guiné-Bissau num contexto diferente. Ou seja, um país que respeita as suas próprias leis, um país que respeita os princípios que regem a democracia, um país que tudo faz para criar as melhores condições para o seu povo, para a sua gente. Aconteceram as presidenciais, viu-se que houve uma participação popular muito grande. Assistimos uma mobilização enorme das pessoas. Podemos dizer que correspondeu inteiramente as expetativas criadas, porque as pessoas estavas animadas por uma esperança renovada num contexto novo. Mas infelizmente, durante essa campanha para as eleições presidenciais, começaram os sinais pouco encorajadores. Isto porque, por um lado, víamos que havia um programa, um partido que apoiava um candidato que tinha todo um programa, tinha toda uma linha que podia ser de facto a base para a tal transformação para a tal mudança do que vinha acontecendo na Guiné-Bissau nos últimos tempos. Aqueles solavancos, golpes de Estado, situações de corrupção, desvario, má governação, tudo isso. Acreditamos, pegando o documento, o guineense pensou: 'Temos aqui tudo que sejam ferramentas para de facto relançar a Guiné-Bissau no contexto de países que estão em luta pelo desenvolvimento'.
DW: A comunidade internacional acabou por apoiar a posse de Umaro Sissoco Embaló num ambiente de clivagens políticas que ainda existe.
TT: É verdade que dentro do processo foi assim que aconteceu na parte final. Mas é verdade, porém, que houve um enorme período de silêncio, de ver a comunidade internacional a recuar perplexa e a não saber exatamente o que haveria de fazer para ajudar a normalização da vida política, da vida democrática da Guiné-Bissau. Isso não aconteceu porque houve interesses dentro da própria Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), outros interesses que não os da Guiné-Bissau, que falaram mais alto.
DW: A própria Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) veio a reconhecer Umaro Sissoco Embaló…
TT: Acabou por reconhecer, mas em princípio o que conduz a esse reconhecimento foi o posicionamento da CPLP impondo uma situação que ia contra aquilo que é o edifício jurídico, as próprias leis, a Constituição da República da Guiné-Bissau, que contrariava as reivindicações, as proclamações feitas por um dos candidatos, neste caso Umaro Sissoco Embaló.
DW: Ao longo deste tempo, fomos assistindo várias crises na Guiné-Bissau. Esta é mais uma. Isto dá razão a quem diz que a Guiné-Bissau é um "Estado falhado”?
TT: É um Estado que importou um conjunto de comportamentos, regras e princípios tóxicos, que acabam por anular qualquer esforço, qualquer projeto sério que vise a mudança de procedimentos, a mudança de comportamentos que consigam criar um caminho que corresponda aos anseios do povo guineense. É um país que está cansado e que cansa os seus parceiros. Eu diria que muitos parceiros que acabaram por adotar essa linha de alguns países da CEDEAO foram vencidos pela exaustão, pelo cansaço. Porque torna-se complexo, difícil, quando tu apoias um país por anos consecutivos, acreditas nos seus políticos e, depois - cada vez que há uma situação no momento eleitoral que pode significar mudanças políticas positivas - há sempre um desaire. Neste momento vemos que o país está perfeitamente encalhado. Não aceita, não pratica, não implementa as suas próprias leis. E mais, anula-se por ausência de programas, por ausência de um caminho certo, por ausência de todo um conjunto de afirmações que um país deve fazer. Mas partindo sempre da sua própria realidade e respondendo em toda a dimensão aquilo que são as suas leis…
DW: Com o Presidente da República a tomar decisões sem respeitar as regras e interferindo na ação governativa…
TT: Ignorando as leis, ignorando as regras e pisando na própria Constituição da República. Ele tem um primeiro-ministro escolhido e nomeado por ele, um Governo que ele deu posse e ele pura e simplesmente não o respeita. São figuras decorativas que ele usa e abusa quando e como quer. São desmandos em excesso que desacreditam o país. Daí que muita gente diga que é um Estado falhado. Com a questão da corrupção, a questão do narcotráfico que continua, o tráfico ilegal de armas, prisões arbitrárias, espancamentos, a desmatação do pouco que existe na Guiné-Bissau da sua riqueza florestal, que não é muita mas é suficiente naquela zona de África para dar algumas garantias. Todos estes desmandos, todas estas arbitrariedades, sugerem o comportamento ditatorial e de muita incompetência.
DW: E a sociedade civil guineense não parece estar um pouco apática perante toda esta realidade?
TT: A sociedade civil guineense não está apática. Por exemplo, se notarmos bem há toda uma ação. Veja-se que agora há toda uma preocupação, há todo um movimento amplo em defesa do meio ambiente, das riquezas naturais, das riquezas haliêuticas, das riquezas minerais... Inclusive de um contrato supostamente assinado, ou assinado mesmo, com o Senegal onde o produto principal, o petróleo, está nas águas da Guiné-Bissau e quem beneficia da grande riqueza do petróleo é o Senegal e não a Guiné-Bissau, porque tem uma parte ínfima daquilo que poderá vir a ser a exploração petrolífera. Ora, são estas questões que fazem crer que o jogo democrático, o processo eleitoral, foi viciado tendo em conta esses problemas que não correspondem aos interesses da Guiné-Bissau.
DW: Está em causa o futuro da democracia na Guiné-Bissau?
TT: A democracia não está a funcionar. O Parlamento não está a funcionar. Não há respeito pelas leis, não há respeito pelos Direitos do Homem, não há respeito pelas liberdades de expressão. Há espancamentos, há raptos, há toda uma ação perfeitamente medieval, que não se coaduna com aquilo que é o tempo de hoje.
DW: Como é que se pode olhar para o futuro, com pessimismo?
TT: O futuro é um grande ponto de interrogação. Isso porque, como disse, a comunidade internacional – os parceiros da Guiné-Bissau foram vencidos pela exaustão. Estão cansados dos nossos desaires, das nossas loucuras. O Governo não tem nada a dizer, cala-se, porque está submetido a um homem só, que é o Presidente da República. O Presidente da República não tem ideias, não tem um programa, faz tudo uma espécie de pilotagem de condução à vista, porque não tem objetivos, não tem alvos a atingir. Não olha para o caminho do desenvolvimento, não olha para aquilo que são os interesses das pessoas. É preciso dizer que a população guineense, na sua grande maioria, vive abaixo do limiar da pobreza. Há uma pobreza franciscana, enorme. Então, quando a pobreza é muita, que não há sequer dinheiro para comprar o anti-palúdico, não há dinheiro para comprar um reagente para fazer uma análise clínica, então as pessoas acabam por ser subornáveis facilmente, porque não têm condições; e há quem tenha e tem muito. A origem desse ter muito ninguém sabe.
DW: "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba” é, de certo modo, um retrato de toda esta realidade que está a descrever?
TT: Este livro se resume a um conjunto de quatro contos e em cada conto há vários outros contos a ele incorporados. É um bocado uma primeira abordagem na Guiné-Bissau sobre como é que nós começamos. Nós, Guiné-Bissau e o marco da independência. A independência foi em 1973, em 1974 o 25 de Abril, o reconhecimento de jure, então nós avançamos. Houve uma série de situações que se criaram com os guineenses. Os guineenses que ficaram e permaneceram no país e que tiveram problemas de reinserção numa nova sociedade, um regime que também falhou em vários aspetos e vários momentos. E guineenses que se achavam profundamente portugueses - porque se assumiram sempre como portugueses, que deixaram a Guiné-Bissau - vieram para a antiga metrópole e, ao chegar, acabaram por descobrir que afinal não eram tão portugueses quanto pensavam. E depois são as contradições que surgem. São os desaires. São questões de sobrevivência que se colocaram nessa altura.
DW: Digamos que, para esses guineenses, houve uma desilusão que antecede a desilusão do pós-independência, marcada pelas várias crises políticas vividas no país?
TT: E o resultado disso hoje, que não comporta neste livro, está à vista. Uma quantidade enorme de jovens de origem africana que não são nem africanos, não são guineenses, não são caboverdianos, não são moçambicanos, não são angolanos, mas também não são portugueses. Portanto, eles estão completamente desinseridos, descontextualizados. Porque o próprio Portugal não estava preparado para receber essa gente que veio do antigo Ultramar. Portanto, este livro conta várias histórias que têm a ver com como é que as coisas começaram mal. O que é que aconteceu?
DW: E a realidade hoje é reflexo ou consequência dessa relação entre Portugal e as antigas colónias africanas de língua portuguesa.
TT: Exatamente. Porque, há inclusive muitos que vieram, trouxeram com eles também coisas muito boas da nossa idiossincrasia, da nossa maneira de ser e de estar, mas também trouxeram coisas más: por exemplo, a mutilação genital feminina, o não acatar os princípios que regem a Convenção dos Direitos da Criança, a Convenção Africana dos Direitos da Mulher. Portanto, há uma série de problemas que acabaram por ser importados para esta antiga metrópole que assistiu e assiste estas situações. Criou outros problemas dentro de um problema que poderia ter sido resolvido na altura. Mas, podia ser resolvido não olhando profundamente para a forma como se deu o processo da implantação da democracia em Portugal, que foi bastante tumultuosa, bastante dificil e com problemas internos próprios para resolver.