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Ucrânia: Soldados russos acusam Putin de os ter "enganado"

Anna Fil
23 de junho de 2022

Soldados russos capturados na Ucrânia dizem que o seu Governo os enganou. Como são tratados os prisioneiros de guerra? E o que pensam eles sobre o conflito? A DW conseguiu falar com soldados russos presos.

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Foto: Anna Fil/DW

Numa prisão na Ucrânia, o segundo andar é reservado aos prisioneiros de guerra russos. O que nos é explicado é que são separados dos outros prisioneiros "para a sua própria segurança".

Após uma solicitação jornalística ao Serviço Prisional Estatal da Ucrânia, a DW foi o primeiro meio de comunicação social autorizado a falar com prisioneiros russos, bem como a filmar na prisão. A autorização foi concedida na condição de que a DW não relatasse o paradeiro exato dos prisioneiros, nem mostrasse os seus rostos.

Só foi possível falar com soldados russos que não estavam acusados de crimes de guerra, nem são alvo de processo judicial. Para entrevistá-los seria necessária uma autorização adicional dos inspetores ou do Ministério Público.

"Fomos enganados"

Sete homens de diferentes idades estão sentados numa das celas. A visita dos jornalistas não os surpreende – representantes das Nações Unidas ou da Cruz Vermelha passam por lá todas as semanas.

Durante a entrevista, os jornalistas da DW foram acompanhados por funcionários do estabelecimento prisional para que pudessem escolher quem iriam entrevistar. Os quatro prisioneiros que concordaram em falar à DW afirmaram ser soldados profissionais que nada têm a esconder.

"Honestamente, fomos enganados", comenta Roman, da cidade de Vyborg, na Rússia. "No início, foi-nos dito que se tratava de coisas humanitárias. Mas eu fui imediatamente enviado para a linha da frente". Roman foi ferido durante os combates na região de Kharkiv. Os militares ucranianos, diz ele, levaram-no consigo e prestaram-lhe cuidados médicos.

Artyom, em contrapartida, frisa que participou por vontade própria na "operação militar especial" – terminologia adotada oficialmente por Vladimir Putin – contra a Ucrânia. O soldado respondeu a um anúncio na Internet e foi, posteriormente, enviado para Donetsk, região controlada por separatistas pró-russos.

Infografik Karte Russische Truppenbewegungen in der Ostukraine PT

Em poucos dias, Artyom aprendeu a conduzir um tanque blindado T-72 e partiu em direção a Zaporizhzhya. No entanto, o seu veículo foi destruído e ele próprio foi capturado pelo regimento Azov ucraniano. Lá, recebeu comida e cigarros. "Fascistas, não vi nenhum", comenta.

Questionado sobre o motivo que o levou até à Ucrânia, Artyom responde: "Na televisão, dizem que supostamente estamos a lutar por uma boa causa, mas isso não é verdade. Só aqui é que me apercebi disso".

Artyom acusa o Exército russo de ser um grupo de "saqueadores e assassinos".

Como é o dia a dia dos prisioneiros russos?

A cela dos prisioneiros de guerra russos está equipada com móveis antigos, é estreita, mas limpa. Há uma mesa comum com pratos de plástico, colheres e garfos para cada prisioneiro. Os talheres são feitos de metal.

Segundo os guardas, para os prisioneiros normais, os talheres são de plástico. No entanto, para os soldados, as coisas são mais fáceis, dizem eles. Os guardas acrescentam que os prisioneiros de guerra não são agressivos e normalmente estão apenas à espera de serem trocados por outros soldados.

O almoço é distribuído aos russos por um prisioneiro ucraniano, sob a supervisão de um guarda. Borsch (uma sopa típica feita com beterraba) e uma papa de trigo sarraceno são servidos por uma abertura nas portas de cada cela. O pequeno-almoço foi papas de milho com carne. De acordo com o plano de refeições afixado no corredor, as refeições são servidas três vezes por dia. Além disso, os prisioneiros de guerra são autorizados a passear e a tomar banho diariamente.

Os prisioneiros de guerra russos têm acesso a livros e a talheres de metal
Os prisioneiros de guerra russos têm acesso a livros e a talheres de metalFoto: Anna Fil/DW

"Saiam daqui! Não têm nada que estar aqui!"

Noutra cela, há três jovens na casa dos 20 anos. Sobre a mesa ao lado das suas camas está uma pilha de livros. Os prisioneiros dizem que gostam de ler histórias policiais e romances.

Um deles é Dmitry. Ele diz que não sabia que a sua unidade ia partir de Belgorod, na Rússia, para a Ucrânia a 24 de fevereiro. "Não nos foi dito para onde íamos. Só quando já estávamos na Ucrânia, e vimos os sinais e as bandeiras, é que nos apercebemos onde estávamos", comenta. "Perguntei ao comandante o que estávamos a fazer ali e a resposta que recebi foi que não devia fazer perguntas desnecessárias", recorda Dmitry.

Quando o seu tanque foi bombardeado perto de Pryluky, na região de Chernihiv, a 27 de fevereiro, Dmitry rendeu-se aos ucranianos.

Durante as entrevistas com os prisioneiros de guerra, um guarda, um psicólogo da instituição penal e outros prisioneiros estavam presentes. A impressão pessoal dos jornalistas da DW foi que a presença dos funcionários não influenciou a narrativa dos entrevistados, nem a sua vontade de falar. Os guardas não ouviram a conversa, mantiveram a distância e não fizeram qualquer pressão.

A DW falou com o prisioneiro Oleg, da Carélia, em privado, numa sala separada. O soldado conta que renovou o seu contrato com as forças russas em março. "Acreditava nas notícias que via na televisão, que íamos viajar para a Ucrânia para ajudar, que haviam aqui nacionalistas que queriam matar e torturar o seu próprio povo", confessa.

Mas quando as tropas russas entraram na região de Kharkiv, Oleg não viu um único nacionalista: "Quando chegámos aos locais, as pessoas disseram-nos frontalmente: 'Saiam daqui! Não têm nada que estar aqui!'"

Quando Oleg assinou o contrato, prometeram dar-lhe formação e garantiram-lhe que não seria destacado para a linha da frente. Contudo, três dias depois, foi enviado para o cerco à cidade de Kharkiv.

A unidade de Oleg tentou regressar à Rússia, mas o comandante não permitiu que tal acontecesse. Pouco tempo depois, a unidade perdeu o contacto com o comandante e foi capturada pelo Exército ucraniano.

Podem os prisioneiros de guerra ser de confiança?

Todos os prisioneiros russos com quem a DW conseguiu falar lamentam ter participado na invasão da Ucrânia e revelam não ter disparado contra civis pacíficos em aldeias e cidades. Até agora, os inspetores ucranianos não apresentaram provas de que se tenham cometido crimes de guerra. Os prisioneiros foram inclusive submetidos a um exame com um detetor de mentiras.

Através do detetor foi possível descobrir que o soldado russo Vadim Shishimarin, que também ficou detido no local, matou um civil na região de Sumy. A 23 de maio, um tribunal ucraniano condenou-o a prisão perpétua, no primeiro processo contra um prisioneiro de guerra russo no país.

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Todos os entrevistados dizem ser soldados profissionais Foto: Anna Fil/DW

Maus-tratos contra militares ucranianos e russos

Nenhum dos prisioneiros entrevistados pela DW se queixou de más condições prisionais ou de tratamento desumano. "É-nos perguntado todos os dias se precisamos de alguma coisa. Se possível, dão-nos. A comida é equilibrada", relata Roman.

Segundo o Ministério da Justiça ucraniano, cada prisioneiro custa por mês cerca de 3 mil grívnias (95 euros), em alimentos, roupas, artigos de higiene, água e eletricidade. A este valor acresce o custo de medicamentos e equipamento médico, além das despesas com o pessoal.

A vice-ministra da Justiça, Olena Vysozka, assegurou à DW que estes gastos são justificados porque as condições de detenção dos prisioneiros de guerra têm de obedecer à Convenção de Genebra. Além disso, os prisioneiros russos precisam de estar saudáveis e em boa forma para trocar com os ucranianos capturados pelos russos, explica.

Tratamento dos prisioneiros na Ucrânia e na Rússia

A chefe da Missão da ONU para os Direitos Humanos na Ucrânia, Matilda Bogner, disse à DW que as condições de detenção dos prisioneiros de guerra russos eram, em geral, satisfatórias. Mas segundo Bogner, os observadores da ONU também receberam informações de que soldados russos foram alegadamente maltratados e torturados após a sua captura.

Há também indícios de que militares ucranianos presos na Rússia e em áreas controladas pela Rússia na Ucrânia estão a ser torturados logo após a sua captura, afirmou Bogner: "Há falta de alimentos e higiene, e o tratamento por parte dos guardas é rude".

A ONU apelou a ambas as partes para tratarem os prisioneiros de guerra de forma humana e para investigarem pronta e eficazmente todos os alegados casos de tortura e maus-tratos.

Não há dados oficiais sobre quantos soldados russos estão detidos na Ucrânia, o número está constantemente a mudar devido a intercâmbios regulares.

"A esperança nunca morre", diz Dmitry, de 20 anos, que ainda está à espera de uma troca de prisioneiros. Depois de três meses preso, ele diz que tudo o que quer é regressar a casa, e nunca mais servir no Exército.

Este artigo foi originalmente escrito em russo.

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