Violência sexual ainda faz parte da vida das mulheres em Moçambique
23 de abril de 2014Maria, de 25 anos, fala ainda com dificuldade sobre o dia em que foi vítima de uma violação, cometida por dois rapazes: “aquilo ficou na minha mente. Eu já tinha ouvido falar de violência sexual, mas nunca imaginei que pudesse acontecer comigo.”
Com a discussão do Código Penal, vigente em Moçambique desde 1886, muitas mulheres foram às ruas para exigir seus direitos. Recentemente, os deputados retiraram da proposta do Código Penal os artigos que davam liberdade ao homem que cometesse o crime de estupro, caso ele aceitasse permanecer casado com a vítima durante pelo menos cinco anos.
A conquista foi alcançada, mas a violência sexual em Moçambique ainda é uma realidade quotidiana.
Relatos da violência
Maria conta que voltava para casa, em Maputo, quando foi abordada pelos criminosos num domingo à tarde. “Acho que já estavam no sítio à espera. Eu tentei resistir porque achei que fosse uma brincadeirinha de mau gosto. Foi ali que tudo aconteceu, eles violaram-me sexualmente, os dois, naquele sítio,” relata.
A história repete-se para outras mulheres que contaram seus casos de violência. Além disso, a sensação de impunidade, pelo difícil acesso à Justiça, é outro aspecto.
O senhor Jorge, por exemplo, já não acredita mais em punição. Ele quase foi demitido de tantas vezes que foi ao tribunal para tentar prender um vizinho que abusou da sua filha.
“Mas o que eu não quero mais é sofrer,” diz. “Sempre me chamam. Eu não posso decidir porque a lei, a justiça, são eles mesmos que fazem. Eu não sei nada, está a ver?”.
O dia-a-dia de senhor Jorge e da filha dele, de apenas 12 anos, mudou em outubro do ano passado. Enquanto ajudava o pai fazendo a entrega de uma encomenda de máquinas. Ela estava a caminho do cliente, quando foi abordada por um vizinho que bebia no bar com os amigos. Ele agrediu-a sexualmente num terreno abandonado.
O papel da mulher na sociedade
Para Carlos Muhla, delegado da Liga dos Direitos Humanos na Província de Gaza, a violência contra a mulher tem uma raiz de desrespeito e indiferença – a começar pela importância feminina na sociedade.
Segundo ele, “a mulher não é uma personalidade contada para tomada de decisões de forma negociada. No aspecto legal, as leis não são suficientemente à altura de defender o direito feminino.”
Dados do Ministério de Educação de Moçambique indicam que mais de 80% das meninas vão para a escola no ensino primário, mas a quantidade diminui drasticamente no ensino médio, frequentado por entre 5% e 15% das meninas. Já no ensino superior, as mulheres contabilizam menos de 5% do total de alunos.
Há inúmeros motivos para essa realidade: a prioridade na educação dos meninos, os casamentos prematuros ou a gravidez indesejada - fato muitas vezes aliado ao abuso sexual.
Abuso em família
O doutor Momade, médico do Hospital de Gaza, em Moçambique, é responsável pelo atendimento às mulheres vítimas de violência.
Momade lembra bem a história de uma adolescente que, por causa de um lobolo que o pai não quis devolver, foi forçada a casar-se com o marido da irmã. “Uma jovem de 15 anos que foi violentada pelos seus pais," avalia.
"A irmã havia perdido a vida, mas eles nem procuraram saber quais foram as circunstâncias que levaram à morte desta jovem," conta. Segundo o médico, a primeira esposa havia morrido em consequência da Sida e "levaram a irmã mais jovem para substituí-la. No entanto, ela ficou grávida e apanhou o HIV, que o marido tinha.”
O médico Momade diz que o primeiro procedimento a ser feito após o estupro é fornecer os medicamentos necessários, desde curativos para os ferimentos até testes de HIV/Sida e remédios para evitar a gravidez.
Efeito psicológico
Dona Juliana é outra vítima da violência sexual que foi cometida por dois criminosos em abril de 2013, numa zona rural, próxima da capital de Moçambique.
Além de todo o peso que carrega até hoje, dona Juliana ainda sofre com o preconceito na rua. Ela afirma que, ao andar pelo bairro, percebe que algumas pessoas apontam o dedo, apesar de "não ter culpa de ter sido vítima dessa violência".
Pior do que a humilhação feita pelos vizinhos, é a feita pelo Estado, considera. Até hoje ninguém foi preso ou julgado pelo crime cometido. “Dói muito. Eu estou desde o ano passado à procura do meu processo e [este] desaparece,” conta dona Juliana.
Todas as mulheres que sofrem essa violência carregam algum tipo de trauma, afirmam especialistas.
Depois de meses de tratamento, Maria, a jovem de 25 anos violada por dois homens a caminho de casa, hoje tem uma vida que considera normal: começou a namorar novamente e pensa no futuro.
“Como mulher, senti-me muito mal [na época do crime]. Hoje já estou bem sentimentalmente, voltei ao normal agora. Namoro, encaro tudo como se nada tivesse acontecido.”
A dor sempre vai existir, mas é preciso reaprender a seguir em frente e, claro, continuar a lutar pelos direitos das mulheres.