"É mito dizer que comer saudável é caro"
23 de abril de 2017Os brasileiros reduziram pela metade o consumo de refrigerante e sucos artificiais e aumentaram a prática de atividades físicas, mas estão cada vez mais obesos. Em dez anos, a prevalência da obesidade passou de 11,8%, em 2006, para 18,9%, em 2016, atingindo quase um em cada cinco habitantes e aumentando também os percentuais de doenças crônicas como diabetes e hipertensão.
Os dados fazem parte da Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizado pelo Ministério da Saúde em todas as capitais do país e divulgada esta semana. O levantamento foi feito a partir de entrevistas realizadas de fevereiro a dezembro de 2016 com 53.210 pessoas.
Em entrevista à DW, a coordenadora de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Michele Lessa, explica essa aparente contradição.
DW Brasil: Como é que a obesidade pode ter aumentado tanto se, por exemplo, a pesquisa aponta uma queda significativa do consumo de refrigerante e sucos artificiais, um ligeiro aumento no consumo de hortaliças e frutas, além de um aumento razoável na prática de atividades físicas?
Michele Lessa: No caso das hortaliças e frutas foi um leve aumento, então eu diria que este consumo está estável. No caso dos refrigerantes e sucos artificiais houve uma redução significativa (eram 30,9% em 2007 contra 16,5% em 2016). Sem dúvida é um ganho, já que os refrigerante e sucos artificiais respondem por boa parte do açúcar consumido. O problema é que houve um grande aumento da oferta e consumo de alimentos ultraprocessados (embora isso não tenha sido quantificado neste estudo). Há 100 anos, 80% dos produtos que vemos hoje nos mercados não existiam. Há uma gama de ofertas de produtos de consumo rápido, cujo aporte de gordura é muito maior. Há um alto consumo de fast food em geral.
DW: Por que a obesidade aumentou tanto no Brasil?
ML: O crescimento da obesidade é um problema mundial. Vários países estão passando por um rápido aumento das taxas de obesidade. No Brasil, houve uma mudança significativa nos hábitos alimentares. As pessoas deixaram de comer feijão e outros alimentos típicos da cultura brasileira – que são menos processados e têm menos gordura, açúcar e sal --, e passaram a consumir alimentos ultraprocessados, aqueles que já vêm prontos em embalagens, e que são ricos em conservantes, aditivos, açúcar, gordura e sal.
DW: Mas uma parte da população se alimenta de forma saudável, não?
ML: Dados da Pesquisa do Orçamento Familiar (POF), de 2008/2009, mostram que 20% da população consomem alimentos saudáveis. E é justamente essa parcela que têm as menores prevalências de obesidade e excesso de peso. Ou seja, há uma relação direta entre o consumo de produtos ultraprocessados e a obesidade.
DW: Qual o papel do sedentarismo nessa equação?
ML: O sedentarismo é um problema. Há 100 anos, as pessoas faziam muito mais atividade física laboral e também nos seus deslocamentos cotidianos. Embora tenhamos registrado um aumento no percentual de pessoas que pratica atividades física (eram 30,3% em 2009 contra 37,6% em 2016), a prevalência ainda é baixa para reverter o excesso de peso e a obesidade. Outro fator que contribui muito para o aumento do peso é o estresse. Ele pode levar a hábitos alimentares ruins, como comer automaticamente e de forma compulsiva. É importante frisar que o aumento da obesidade não é culpa do indivíduo. Trata-se de um conjunto de fatores que leva pessoas a hábitos poucos saudáveis. Sem falar na genética.
DW: Qual é a situação do Brasil comparada à de outros países?
ML: Países como os Estados Unidos têm prevalências maiores de excesso de peso (60% contra 53,8%). No entanto, a transição demográfica, epidemiológica e nutricional que, nesses países, levou de 100 a 120 anos, no Brasil aconteceu em 30 anos. A parte boa é que conquistamos uma expectativa de vida maior mais rapidamente, mas, por outro lado, essa transição é muito rápida do ponto de vista de políticas públicas. Se continuarmos no ritmo em que estamos, em 16 anos vamos atingir o patamar dos americanos. Nossa meta é deter o aumento da obesidade até 2019. Até hoje nenhum país do mundo conseguiu reduzir o problema.
DW: Este aumento faz parte de uma tendência mundial, então, ou há alguma particularidade brasileira?
ML: É uma tendência mundial. Em vários países da América Latina, com o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, é uma tendência bem clara. E até países africanos, com altos índices de desnutrição infantil, já apresentam taxas crescentes de obesidade em adultos.
DW: Qual a relação entre pobreza e obesidade no Brasil?
ML: Entre pessoas de baixa renda é onde mais cresce a obesidade. Em primeiro lugar, são pessoas mais expostas a produtos de pior qualidade. Empresas fazem produtos um pouco melhores, voltados para as classes A e B, e de pior qualidade para as classes C, D e E, com mais gorduras trans, por exemplo. Essas pessoas, em geral, levam pelo menos duas horas para chegar a seu local de trabalho. Ou seja, quando chegam em casa estão exaustas, não têm tempo para praticar uma atividade física, para se alimentar corretamente. Essa tendência é observada em vários países: baixa escolaridade e baixa renda diretamente relacionadas à obesidade.
DW: É muito caro comer de forma saudável?
ML: Olha, temos que desmistificar isso. Se compararmos o preço de um salgado de baixa qualidade e o de uma fruta, a fruta é mais cara. Mas se compararmos a alimentação como um todo, sai mais barato comer de forma saudável. Gasta-se menos fazendo comida em casa do que consumindo na rua. E quando eu falo em alimentação saudável, estou falando de arroz, feijão, salada, fruta, tapioca, café com leite, a comida da nossa mãe, da nossa avó, não estou falando de nada caro, de produtos diet ou light. Tanto que entre esses 20% da população que comem de forma saudável, não há diferença entre mais pobres, mais ricos ou entre regiões do país. Existe hábito alimentar saudável mesmo na população de baixa renda.
DW: Ainda existe fome no Brasil?
ML: Sim, mas com uma prevalência muito menor do que há dez anos. Tanto é assim que desde 2014 o Brasil saiu do mapa da fome da FAO, ou seja, menos de 5% da população é desnutrida. Existe uma desnutrição infantil residual, sobretudo entre comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas, em especial na região Norte.
DW: As principais doenças que afetam os brasileiros, então, estão ligadas ao excesso de peso?
ML: Sim. Quanto maior o Índice de Massa Corporal (o peso dividido pela altura ao quadrado), maior o índice doenças crônicas. São 26 patologias, como hipertensão arterial, diabetes, câncer, associadas à obesidade. O percentual de casos de diabetes passou de 5,5% em 2006 para 8,9% em 2016. No caso da hipertensão, o percentual pulou de 22,5% para 25,7% no mesmo período.