70 anos de canto inteligente e sensível
29 de julho de 2005Dresden em julho de 1945: após o fim da Segunda Guerra, a capital da Saxônia encontra-se em destroços. Entretanto, em meio ao cenário pós-apocalíptico da Alemanha derrotada, um menino de dez anos incompletos faz uma descoberta maravilhosa, e que definirá sua vida: Peter Max Schreier entra para o Kreuzchor, o coro da Igreja da Cruz.
Ele nascera em 1935 na cidade de Meissen, crescendo em Gauernitz, um lugarejo nas proximidades de Dresden. A música não era exatamente algo de inédito para ele, já que seu pai, kantor (diretor musical eclesiástico) e professor, aspirava a uma carreira musical para seus filhos.
Como Peter Schreier revelará numa entrevista ao jornal Süddeutsche Zeitung: "Uma vez por semana éramos alimentados com música de câmara. Isso fazia tão parte do dia-a-dia como o banho dos sábados, na bacia de latão". No ano anterior ele fizera seu début musical, como um dos Três Meninos da Flauta Mágica, de Wolfgang Amadeus Mozart.
Evangelista nato
Porém o contato diário com a música coral, a possibilidade de cantar os solos de contralto das obras de Johann Sebastian Bach e outros grandes compositores, abrem uma nova dimensão à vivência e ambição artística do jovem.
Essa nova paixão tem também um aspecto afetivo: ele passa a morar, com outros coralistas e professores do Kreuzchor, num porão nos arredores de Dresden. Essa alternativa para o inferno do pós-guerra forma uma comunidade extremamente coesa. Peter nem quer voltar para casa, e até hoje seus maiores amigos são antigos membros do coro da Kreuzkirche.
A mudança de voz, aos 16 anos, aproxima o adolescente de um grande sonho: tornar-se tenor, a fim de poder cantar a parte do Evangelista nas Paixões de Bach, o que realizará pela primeira vez quatro anos mais tarde. De 1956 a 1959, Peter estuda Canto e Regência na Escola Superior de Música de Dresden. Sua chance profissional na ópera chega em 1961, ao ser contratado pela Staatsoper da cidade. A partir daí inicia-se uma tão brilhante quanto sólida carreira de cantor lírico e de câmara.
Livre trânsito artístico
Desde 1949 o país estava dividido em duas repúblicas, a Federal da Alemanha (RFA) e a Democrática Alemã (RDA). Esta última, a metade leste, mantinha regime comunista com o apoio da União Soviética. Para garantir o isolamento frente à esfera ocidental e evitar a fuga dos descontentes, os alemães orientais só podiam atravessar a Cortina da Ferro sob estrito controle.
Entre as resumidas exceções a essa regra, estavam artistas e esportistas "modelo". Do ponto de vista do regime, seu indiscutível mérito constituía um cartão de visita, uma prova viva da suposta superioridade do "outro lado". Assim, eles gozavam da permissão para circular entre os dois mundos então inconciliáveis.
Entre os poucos privilegiados estava tanto Peter Schreier como o aclamado baixo-barítono dresdense Theo Adam. Ambos compunham – ao lado dos "ocidentais" Dietrich Fischer-Dieskau, Christa Ludwig, Agnes Giebel e Gundula Janowitz – o time dos grandes cantores alemães entre as décadas de 60 e 80, disputado por regentes como Herbert von Karajan, Karl Böhm e Karl Richter.
A partir de 1966 Peter Schreier passa a ser presença constante na Ópera Nacional de Viena, e pouco mais tarde do Teatro Scala de Milão. Também da década de 60 datam suas primeiras aparições nos Festivais de Bayreuth e Salzburgo.
O tenor atuou nas casas de ópera de praticamente todo o mundo, incluindo o nova-iorquino Metropolitan e o Teatro Colón de Buenos Aires. Em 1970 Schreier estreou como regente, apresentando, à frente da Staatskapelle de Berlim, uma de suas obras favoritas: a Paixão segundo São Mateus de Bach.
Nomen omen est?
O sobrenome Schreier significa literalmente "berrador" e, por extensão, "pessoa irascível", e "anunciador, arauto". Conotações que seguramente valeram uma série de piadas desconfortáveis para alguém que escolheu a carreira de cantor. Especificamente em se tratando do timbre de tenor, o mais "estridente" de todos.
Porém Peter Schreier desmente o ditado "Nomen est omen" (O nome é um presságio). Para comprová-lo, basta a seguinte citação: "É uma voz que logo atrai a atenção entre centenas de outras, tão cálida, tão clara, tão leve. E quão eloqüente e diferenciada essa voz sabe soar, impetuosa, fervorosa, suplicante. Poucos cantores alcançam tamanha expressividade".
Este ditirambo a Schreier foi publicado pelo jornal Sächsische Zeitung, em 29 de julho de 2000. Beleza vocal é, naturalmente, questão de gosto. Porém, mesmo os que não concordam com o entusiasmo dos fãs de Schreier quanto a seu timbre, não negam suas qualidades de intérprete inteligente e sensível, capaz de projetar com grande intensidade o significado dos textos cantados.
Um músico, duas carreiras
A exemplo de seu colega espanhol, Plácido Domingo, Schreier tem exercido paralelamente e com sucesso as profissões de cantor e maestro durante décadas.
Inquirido se a aura de poder constituía para ele um dos atrativos da atividade de regente, negou terminantemente: "É um retorno à coletividade, a felicidade de fazer música entre iguais. Não quero impor minha vontade a outros músicos – embora isso seja por vezes necessário. Porque tenho procurado orquestras que escolheram explicitamente minha forma de reger".
Sobre o canto, afirma: "É uma sorte haver recebido uma voz para se expressar, até mesmo comunicar alegria. Um professor tem que punir, um cantor pode prover elementos construtivos para os outros. Nesse aspecto, essa profissão é uma bênção".
Homenagem a Dresden
Apesar ou por causa disso, Schreier subiu pela última vez a um palco de ópera em 2000, para interpretar um de seus cavalos de batalha: o papel de Tamino na Flauta Mágica. Sua justificativa: "Alguma hora vou deixar de ser um jovem príncipe".
Desde então ele se concentra na interpretação de lieder e oratórios. Mas em maio de 2005 anunciou que encerrará definitivamente a carreira de cantor, atendo-se à de maestro, onde tem-se dedicado à música de Bach, Haydn e Mozart.
Porém, antes, Peter Schreier ainda pretende cantar na reinauguração da Igreja Frauenkirche de Dresden, marcada para outubro deste ano. Essa homenagem à cidade onde vive e que tanto ama ele não deixará escapar. Sua última apresentação como cantor será em dezembro, com o Oratório de Natal bachiano, em 18 de dezembro.