A Bundesliga já pode dar adeus às ilusões
14 de abril de 2020Há exatamente 108 anos, em 14 de abril de 1912, o Titanic, considerado o navio mais luxuoso e seguro da época, colidiu com um iceberg. Pouco depois, a majestosa embarcação considerada inafundável, naufragava no Atlântico, deixando no seu rastro mais de 1.500 mortos. Em instantes, a crença inabalável na alta tecnologia e no futuro brilhante dos grandes navios transatlânticos, evaporou-se nas ondas do oceano revolto.
Me lembrei dessa efeméride porque ela nos ensina que as certezas de hoje, sobre as quais muitas vezes construímos a nossa existência, podem virar fumaça amanhã em decorrência de fatores insólitos e inesperados.
Durante as últimas décadas, por exemplo, um negócio chamado futebol, construído sob a égide da Fifa e suas afiliadas, auferiu valores bilionários, especialmente para federações, clubes, investidores, dirigentes, jogadores e agentes. Alguns minguados sobraram também para milhares de funcionários subalternos e pequenos prestadores de serviços.
Foram construídos estádios padrão Fifa de qualidade, verdadeiros monumentos erguidos à vaidade do homem para as Copas na África do Sul, Brasil e Rússia. Muitas dessas arenas agora são elefantes brancos, abandonados à sua própria sorte, e isso em países de atroz desigualdade social. Pelo menos este pecado – o desperdício de dinheiro público com a construção de novos estádios –, a Alemanha não cometeu na organização da Copa de 2006.
Particularmente, o futebol profissional alemão com sua Bundesliga é tido e havido como modelo de administração financeira. Nestes primeiros 20 anos do século 21, do ponto de vista econômico-financeiro, o voo da liga foi tranquilo, mesmo porque prevalecia um céu de brigadeiro, que fazia a alegria de todos os envolvidos.
Agora, entretanto, veio a turbulência provocada pela crise de covid-19, e a Bundesliga luta desesperadamente pelo reinício das suas atividades e joga todas suas fichas em eventuais jogos-fantasma, com portões fechados para o grande público. De outro lado, nos bastidores da Bundesliga já se trabalha com o pior cenário possível: o cancelamento definitivo da atual temporada. Os seus dirigentes sabem que a decisão final sobre a continuidade ou não do campeonato, não está em suas mãos.
Está nas mãos dos virologistas que assessoram o governo e dos políticos. Muitos especialistas da área estão seguros de que será impossível terminar normalmente a atual temporada nos próximos meses. O professor Jonas Schmidt-Chanasit, do Instituto de Medicina Tropical de Hamburgo, adverte que jogos-fantasma não são uma solução efetiva para o problema.
"Estes jogos podem induzir as pessoas a se encontrar e torcer juntas por seu time, seja nas suas casas ou à frente dos estádios. Não se pode subestimar a força que o futebol exerce sobre os torcedores", afirma Schmidt-Chanasit.
Com sua fala, o virologista aponta o maior problema que poderá ocorrer caso a temporada seja reiniciada. Muitos torcedores fatalmente se reuniriam em espaços públicos ou não. Essas atividades grupais estariam em oposição a todas as medidas restritivas que o governo está impondo à toda população sob pena de multas pesadas caso não sejam obedecidas.
O político e cientista especializado em epidemiologia Karl Lauterbach é categórico: "No momento, não há proteção suficiente para a saúde dos jogadores e profissionais envolvidos, mesmo para jogos-fantasma. Futebol é um esporte de contato físico e, consequentemente, a transmissão do vírus será inevitável caso alguém esteja infectado. Talvez possamos autorizar jogos de futebol no outono, em fins de outubro, quando tivermos testes suficientes disponíveis para todos."
Lauterbach tocou num ponto nevrálgico. Calcula-se que para realizar os jogos restantes da Bundesliga serão necessários de 20 a 30 mil testes para todo pessoal envolvido com os jogos-fantasma (jogadores, comissão técnica, funcionários auxiliares dos clubes, pessoal de TV e mídia em geral, etc.).
A prioridade do Ministério da Saúde agora é testar a maior parte possível da população, sem esquecer as pessoas envolvidas diretamente no combate ao vírus em hospitais, ambulatórios e laboratórios. Dificilmente a sociedade vai entender que, frente à uma eventual escassez dos testes, sejam contingenciados lotes especialmente para profissionais do futebol, enquanto nos hospitais não há testes disponíveis para quem realmente necessita.
É por essas e outras que, internamente, a Bundesliga já se prepara para o encerramento do campeonato e trabalha com diversos cenários como, por exemplo, considerar apenas a classificação final do primeiro turno ou declarar o campeonato encerrado com a classificação atual.
A mais drástica das opções seria a anulação pura e simples de toda a temporada. Não haveria um campeão, nem rebaixamento para a segunda divisão. Para as competições europeias, valeria a classificação da temporada passada.
Seria um cenário inimaginável há apenas um mês quando foi realizado o último jogo da Bundesliga. Agora poderá se tornar triste realidade e, ao mesmo tempo, representará um adeus às ilusões de que logo tudo voltará a ser como antes. Não voltará e não será.
"Sei que nada será como antes,
Sei que nada será como está,
Amanhã ou depois de amanhã"
(Milton Nascimento)
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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Desde 2002, atua nos canais ESPN como especialista em futebol alemão. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast "Bundesliga no Ar". A coluna Halbzeit sai às terças. Siga-o no Twitter, Facebook e no site Bundesliga.com.br
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