"Criamos os animais para matar. Mas não para ver sofrer"
17 de maio de 2024Do telhado de casa, onde se abrigava para fugir água que avançava em sua propriedade em Cruzeiro do Sul (RS), Mauro Gilberto Soares, 61 anos, viu um porco nadando contra a correnteza por cerca de uma hora. "Parecia que ele pedia socorro. E me senti culpado por não oferecer um lugar seguro", lamentou o produtor rural. Soares, sua família e alguns vizinhos foram resgatados após passarem uma noite no sótão da residência, mas praticamente todos os animais de produção foram levados pela força do rio Taquari.
Assim como os humanos, os animais têm sofrido com as enchentes que assolam o estado gaúcho. O resgate do cavalo Caramelo, em Canoas, que passou quatro dias ilhado e foi retirado de cima de um telhado, assim como o salvamento de inúmeros bichos de estimação, têm comovido pessoas de todo o Brasil e do mundo.
Já foram resgatados cerca de 12 mil animais, segundo o governo do estado, a maioria cachorros e gatos, mas ainda é incalculável o número de bichos de produção da pecuária perdidos nas enchentes. No campo, há uma mistura de dor pela morte de vacas, bois, touros, porcos e galinhas e pelos prejuízos dos produtores rurais.
Mauro Gilberto Soares demorou a sair de sua propriedade justamente por causa dos animais de criação – 44 vacas e 15 porcos. Abriu o chiqueiro e tentou colocar os bichos em um lugar mais seguro. Nada adiantou. "Foi aterrorizante. A gente cria os animais para matar. Mas não para ver sofrer. Dói muito, é muito triste", contou.
As mortes e a fome
A Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do Rio Grande do Sul informou, por e-mail, que "liberou a movimentação de animais que estavam em áreas de risco de alagamento e junto com voluntários tem auxiliado nos transportes desses animais quando necessário".
Disse também que o Comitê de Crise da Causa Animal "resgata os animais de produção quando são encontrados com os demais, mas essa ação tem sido feita mais pelos órgãos de segurança, ONGs e entidades, com o apoio da Secretaria da Agricultura quando solicitado, como aconteceu na região de Guaíba e Eldorado do Sul."
De acordo com a bióloga Patricia Tatemoto, PhD em Medicina Veterinária e gerente de pesquisa e bem-estar animal da ONG Sinergia Animal, há evidências científicas robustas de que ao menos todos os animais vertebrados sentem dor e são capazes de entender que estão em situações desafiadoras. Embora seja difícil mensurar o tamanho do sofrimento dos bichos nas enchentes, a especialista chama atenção para aqueles que vivem confinados.
"Grande parte dos animais na pecuária são criados em altas concentrações e são impossibilitados de fugir ou de buscar abrigo em áreas mais elevadas, como fariam na natureza. Eles não têm opção. Ficam presos em galpões ou até mesmo em gaiolas individuais, como é o caso das porcas gestantes e de centenas de bezerros na indústria do leite. Em caso de enchente, esses animais podem agonizar por horas ou até dias antes de se afogar", explica a bióloga.
Além das mortes, as consequências para o bem-estar animal e para os produtores rurais vão durar meses, analisa a professora do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Liris Kindlein. Os animais que conseguiram fugir de áreas alagadas, por exemplo, provavelmente perderam peso, ficaram desidratados e sofreram estresse.
Além disso, devido à falta de logística, com estradas obstruídas e falta de grãos, muitos animais correm o risco de passar fome. "É um grande problema. Eles vão ter jejum, vão passar fome. Vai afetar o bem-estar animal com certeza. Quando se coloca comida, eles competem, então tem mais arranhões, prejuízos de bem-estar animal", frisa Kindlein.
Segundo o vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), Eugênio Zanetti, há uma campanha para que produtores de outros estados enviem pré-secados, uma espécie de pasto armazenado em rolos que serve de alimento. "Há muitas regiões onde não têm água, têm lama, e o gado não tem nem onde colocar a boca. E os silos de silagem foram perdidos", explica Zanetti.
O clima e os prejuízos
Um estudo do Observatório do Clima lançado em outubro do ano passado estimou que a produção de alimentos representou, em 2021, 73,7% das 2,4 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa lançadas pelo Brasil na atmosfera. O principal poluente são os desmatamentos usados em sistemas alimentares, seguidos pela agropecuária, principalmente o rebanho bovino.
Paradoxalmente, o setor é prejudicado pelos efeitos das mudanças climáticas causadas pela emissão de gases do efeito estufa, como pode ser visto no Rio Grande do Sul. Dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apontam que a agricultura e a pecuária estão entre os principais prejudicados, com R$ 1,8 bilhão e R$ 207,8 milhões de prejuízos, respectivamente – os números sobem em cada nova atualização.
Em Taquari, por exemplo, 83 mil aves morreram afogadas na Avicampo Ovos. O sócio-proprietário Fabio Frühauf contou que a empresa investiu no ano passado em sistema automatizado e fábrica de rações. "Foram 10 anos de trabalho perdidos em um dia", afirma. Eles estimaram um prejuízo de R$ 4 milhões. Agora, a empresa está pensando em investir em uma nova área.
Para o vice-presidente da Fetag-RR, Eugênio Zanetti, é preciso um estudo aprofundado para analisar os riscos para as propriedades rurais. "Teve áreas que em setembro, novembro e agora foram levadas embora. Tem que pensar em realocar esses agricultores para que eles possam reconstruir em um local mais seguro. Mas, sem dúvida, o produtor vai precisar de muita ajuda, com linhas de crédito e juros subsidiados para poder reconstruir".
O produtor rural Mauro Gilberto Soares já saiu da localidade atingida pelas enchentes, na Linha Lotes, nas proximidades do rio Taquari. Agora, está em uma propriedade que sua esposa recebeu de herança, em um local mais alto do município, mas menor e sem a infraestrutura adequada. Entre os animais, levou a única que sobrou, uma leitoa moura, uma raça mais rústica que corre risco de extinção no Brasil. "Ela subiu nos galpões. Não sei como conseguiu chegar lá em cima sem se afogar", contou.
O que fazer no futuro
Uma das inúmeras questões que ficam das chuvas no Rio Grande do Sul é o que fazer para salvar os animais de criação e garantir o seu bem-estar durante tragédias climáticas. A pasta da Agricultura gaúcha informou que "atua com planos de contingência que visam a defesa sanitária animal, englobando enfermidades como febre aftosa, peste suína, gripe aviária, entre outros", sem especificar a situação das enchentes. O Ministério da Agricultura e Pecuária não respondeu aos questionamentos da reportagem.
A bióloga Patricia Tatemoto acredita que sejam necessárias algumas medidas. Para a especialista, deveria haver um sistema de alerta eficiente para que os produtores rurais pudessem ser informados com antecedência dos eventos extremos e, no mínimo, pudessem deixar seus bichos livres.
Além disso, a bióloga sugere a formação de uma rede articulada entre os produtores. "Com a informação sobre os eventos extremos, eles poderiam embarcar seus animais de áreas de risco e levá-los para fazendas mais resilientes. Seria um primeiro passo. E daria para pensar já", reflete.
Na cidade gaúcha de Triunfo, há uma solução parecida. Há 20 anos, a empresa Ramos Transporte Aquaviários, contratada pela prefeitura, resgata animais em algumas ilhas no rio Jacuí. "Como na região desembocam os rios Taquari e Jacuí, quando chove forte no centro do estado a gente avisa os produtores que vai ter enchente e começa os salvamentos", conta Luís Henrique Velho Ramos, 30 anos.
Mesmo que desta vez a enchente tenha sido mais forte, a empresa tirou cerca de 600 animais, principalmente bois e vacas, usando balsa e rebocador. Na última viagem que fizeram, no dia 9 de maio, auxiliaram em um salvamento que não fazia parte do contrato com a prefeitura.
Na ilha, bois e vacas estavam quase completamente encobertas pela água, tendo que levantar a cabeça para poder respirar. Conseguiram tirar 80 indivíduos, alguns com mais de 500 quilogramas. Como eram cinco da tarde e escurecia, o que dificultava a navegação no rio, precisaram deixar para trás cerca de 20 animais. "A gente não gosta de ver bicho morrer", lamentou Ramos.