A misteriosa ausência da covid-19 na Coreia do Norte
27 de agosto de 2020Quando o neurologista Choi Jung Hun tratava pacientes na Coreia do Norte, ele tinha de providenciar o próprio equipamento de higiene médica. "Pediam-me que comprasse máscaras cirúrgicas e luvas para mim mesmo", relata em entrevista concedida por Skype, ao se recordar de como não havia nenhum equipamento de proteção para os médicos.
Embora não haja como verificar a veracidade do seu relato, ele é semelhante ao de outros vindos do país asiático, o mais isolado do mundo.
Choi fugiu para a Coreia do Sul em 2012. Até então, ele trabalhava no Centro de Controle de Doenças na cidade portuária norte-coreana de Chongjin. Como jovem médico, ele acompanhou de perto a epidemia de Sars, entre 2002 e 2003. Na época, ele não tinha muito mais do que um termômetro para fazer diagnósticos.
Agora, o desertor é pesquisador convidado da Universidade da Coreia em Sejong. Um homem esguio e de rosto sério, Choi considera mera propaganda que a Coreia do Norte tenha sido poupada da pandemia de coronavírus – conforme relatado pela mídia estatal. Principalmente por a fronteira de 1.400 quilômetros com a China, principal parceiro comercial da Coreia do Norte, ter ficado aberta até o fim de janeiro.
Choi afirma que a covid-19 provavelmente entrou no país naquela época. "Claro que pessoas morreram de coronavírus na Coreia do Norte", diz enfaticamente. Não é nada incomum morrer em decorrência de um vírus na Coreia do Norte, acrescenta, mesmo de alguns que não matam em outras partes do mundo. "A Coreia do Norte é um museu de vírus."
Ele diz não ficar surpreso por o regime afirmar persistentemente que conseguiu conter a covid-19. "O sistema de saúde é muito precário. Eles não querem mostrar isso para o mundo." E há uma razão mais: a mensagem que isso enviaria à população.
No entanto, em 25 de agosto, o comitê central do Partido dos Trabalhadores da Coreia se reuniu pela terceira vez em poucas semanas, sob a liderança de Kim Jong-un. Com uma franqueza pouco comum, ele lamentou "falhas" e "deficiências" na luta contra o vírus.
"Se ficar claro que o sistema de saúde não pode cuidar da população, as pessoas perderão a confiança no governo. Isso significaria que o sistema não é infalível", explica Choi.
A mídia estatal norte-coreana tem falado muito sobre a pandemia. Há atualizações diárias que sugerem que o regime está fazendo todo o possível para proteger a população: "Medidas contra a epidemia são fortalecidas ainda mais", "Campanha nacional contra a epidemia é intensificada", "Ação rápida para enfrentar a epidemia" são algumas manchetes dos últimos dias.
Mas o jornal online Daily NK, especializado em Coreia do Norte e com reportagens detalhadas sobre o país, conta uma história diferente. A equipe editorial está sediada em Seul e publica artigos em que os autores referenciam fontes anônimas do Norte, cujas identidades devem permanecer desconhecidas por razões de segurança.
Em meados de junho, por exemplo, o Daily NK publicou que "mais de 5 mil pessoas que haviam sido liberadas das instalações de quarentena do país podem ter morrido, especulou uma fonte." Também aqui não é possível verificar a veracidade da informação.
Uma coisa é certa: a isolada Coreia do Norte reagiu à crise do coronavírus com amplas medidas. As fronteiras foram reforçadas ainda mais, e escolas e universidades foram fechadas por meses. No fim de julho, a mídia estatal relatou o primeiro e até agora único caso suspeito: um desertor que teria se arrependido e retornado ao país atravessando a fronteira com a Coreia do Sul.
Sob a liderança de Kim Jong-un, o politburo realizou uma reunião de emergência e impôs um lockdown aos 200 mil habitantes da cidade fronteiriça de Kaesong. Desde então, ninguém mais tocou no assunto. O toque de recolher foi suspenso em meados de agosto. A Coreia do Norte não aparece nas estatísticas de coronavírus compiladas pela Universidade Johns Hopkins.
Como esses sinais mistos podem ser interpretados? Desde a crise do coronavírus ficou ainda mais difícil obter notícias da Coreia do Norte, pois a maioria dos estrangeiros deixou o país. Muitas embaixadas, incluindo a maioria das europeias, também retirou seus funcionários. A Embaixada da Alemanha, por exemplo, fechou em 9 de março.
Alguns países do Leste Europeu ainda têm presença diplomática em Pyongyang. "Não há planos de fechar a embaixada", disse um porta-voz da representação polonesa à DW, acrescentando que as autoridades irão "acompanhar de perto os desdobramentos".
A embaixada romena também comunicou que mantém suas atividades. Mas "familiares dos diplomatas e alguns outros funcionários voltaram para a Romênia em 9 de março". Representantes da República Tcheca e da Bulgária também continuam na Coreia do Norte.
Em meados de agosto, o blog norte-coreano NK News relatou que a Suécia também retirou os funcionários da sua embaixada, o que teria consequências para os cidadãos alemães que estão sob cuidados da Suécia desde o fechamento da embaixada alemã. Não se sabe quantos são.
O Ministério do Exterior da Suécia comunicou à DW que a embaixada não foi fechada, mas que seus diplomatas foram "temporariamente realocados". A representação diplomática é atualmente administrada desde Estocolmo, enquanto o trabalho é feito tanto na capital sueca como na norte-coreana.
O ministério reconheceu que a situação para diplomatas e organizações internacionais tem se tornado mais difícil.
No site do Ministério alemão do Exterior, as informações sobre viagem e segurança relativas à Coreia do Norte são claras e vão direto ao ponto: "É impossível saber se há infecções na Coreia do Norte. Deve-se supor que o sistema de saúde local não tenha capacidade para diagnosticar e lidar com casos graves de covid-19".
Essa suposição é confirmada pelo médico Choi. No entanto, segundo ele, isso não se deve à qualificação dos médicos e enfermeiras, pois a equipe médica é bem treinada. "Os médicos são perfeitamente capazes de reconhecer casos de covid-19 por meio dos sintomas. Mas eles não podem confirmar oficialmente o diagnóstico sem o equipamento necessário."
Não são apenas os kits para testes de coronavírus que estão em falta na Coreia do Norte. "Simplesmente não há infraestrutura. Nos hospitais há cortes frequentes de energia, em alguns deles não há água encanada."
Levar suprimentos para o país é uma tarefa complicada: não apenas por causa das fronteiras fechadas, mas também por causa das extensas sanções da ONU. Uma das organizações autorizadas a levar suprimentos para a Coreia do Norte é a Médicos Sem Fronteiras (MSF). Uma das entregas chegou ao Ministério da Saúde norte-coreano em 30 de março: máscaras, luvas, roupas de proteção, produtos de higiene, antibióticos. Para isso, a MSF precisou de uma licença especial.
Na própria Coreia do Norte quase não há mais organizações de ajuda. Entre as organizações alemãs, apenas a Welthungerhilfe está presente, mas seus projetos também estão suspensos no momento. A única organização que tem acesso a todas as províncias é a Cruz Vermelha da Coreia do Norte, segundo o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.
Além da equipe da Cruz Vermelha, há 43 mil voluntários e funcionários do governo para explicar às pessoas como se proteger do coronavírus. No início de julho, a Cruz Vermelha norte-coreana recebeu equipamento para realizar 10 mil testes de covid-19, bem como termômetros clínicos infravermelhos, máscaras N95 e máscaras cirúrgicas comuns, protetores faciais, roupas e óculos de proteção.
A remessa deveria beneficiar pessoas de todo o país. Mas Choi duvida que a distribuição funcione. Existe uma grande divisão entre a capital e o resto do país. "A maioria dos equipamentos vai para os hospitais de Pyongyang." Os médicos nas áreas rurais geralmente não têm mais do que o próprio Choi tinha: um termômetro.
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